Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

25.5.20

Dia 69: por Ana Ávila

Mamá, mamá, mamá. Um gritinho cada vez mais alto e ansioso me tira de um sono profundo. Passo os olhos pelo celular: 5h47. As noites não têm sido fáceis. Dezenas de dias se amontoam muito parecidos. Sei que lá por meados de março nos fechamos em casa. De lá pra cá, contamos as raras saídas nos dedos das mãos. Às vezes, me pego pensando com incredulidade que quase não vi tv, li, deitei no sofá ou na rede com meus próprios pensamentos por uns poucos minutos em todo esse tempo. 24 horas em casa, como é possível? A natureza ansiosa nunca me deixou aquietar corpo e mente por muito tempo, é verdade. Quando um para, o outro acelera. Mas, a rotina de repetir à exaustão atividades às quais não podemos nos furtar com uma bebê em casa exige, do corpo e da mente, uma energia diferente.

O engraçado é que parece tudo igual, mas não é. Longe de ser. Assim como o mundo muda lá fora, a gente muda aqui dentro. Em 28 de abril acordei às 5h50, fiz café cantarolando trechos de não mais de 10 segundos de músicas variadas - de Tiquequê a Belle de jour -, o entretenimento favorita da Flora enquanto a gente prepara a refeição e atende ao pedido recorrente: ‘mais pão’. Uma mão mexe os ovos, a outra passa o café, um pedacinho de pão pra nenê, ah hei! ah hei! ah hei!, pica o mamão, busca o copo d’água que ficou no quarto, e batedeira, e furadeira, pipoca e liquidificador, torra o pão que já tá ficando velho, se eu fosse uma formiguinha, seria pequenininha, mais pão, empurra o cadeirão pra sala, senta, uma colherada de ovo, uma de mamão, mais pão, o café esfriou, esquenta o café, mais pão, ovo, mamão, acabou o pão, filha. Troca a fralda depois de uma longa, longuíssima argumentação, história sem fim sobre o porco da fralda cheia, distração com o quadro do coelho, argumentações totalmente infrutíferas, risadas, cafungadas no pescoço e um pouco de gritaria também. Bola, balão, dancinha pela sala, o papai acordou, eba! Ele levanta com a cara ainda amassada pela maratona noturna com a nenê. Parece tudo igual, mas não é.

Fecho a porta do quarto pra última revisão da apresentação. Leitura dinâmica, uma olhada rápida nos slides. Testo o skype, que não usava há uma eternidade. Lento, travando, desisto. Volto pra sala já na hora do almoço da nenê. Dou a comida. Da cozinha vem um cheiro bom de alho fritando na manteiga. Leo caprichou no tradicional, rápido e delicioso espaguete com molho de tomate. Ele bota a nenê pra dormir enquanto eu finalizo almoço e arrumo a mesa. Sempre comi rápido, mas ultimamente tenho a sensação de que a comida simplesmente desaparece do meu prato sem que eu nem perceba. Volto pro computador. Meu orientador avisou que não será mais por skype. Microsoft Teams. Desconheço. Login, teste, tudo certo. Às 14h30 começa a defesa. Depois de dois anos, vou enfim me tornar mestra em Ciências da Comunicação.Títulos nunca pareceram tão inúteis. O pensamento vem pronto. Repenso. Não é o título. É uma pesquisa que me orgulha, que consumiu boa parte dos meus dois últimos anos, que tensiona a relação entre violência de gênero, mídia e redes sociais. Ok, me deixo estar feliz e orgulhosa de mim mesma por uns instantes. Parece tudo igual, mas não é.

Em 16 de março fui à Unisinos pela última vez. Fazia poucos dias que tinha me dado conta da gravidade da situação. Naquela semana embarcaríamos para a Espanha de férias. Até dias antes, mantínhamos os planos como se possível fosse. A minha medida mais extrema havia sido comprar um vidro de álcool gel, meio por acaso, quando vi no caixa da farmácia. Quando olho pra trás, tudo parece ainda mais absurdo. Desistimos e insistimos umas quatro vezes em poucos dias até batermos o martelo. Enquanto isso, eu lia ansiosa o noticiário nos principais sites espanhóis várias vezes ao dia. Parecia controlado, estaríamos exagerando? Fazia contas, pensava e repensava. Quando tomamos a decisão e partimos pros cancelamentos, alguns anfitriões do airbnb indicavam que a decisão era um equívoco. ‘Em Sevilla, no pasa nada’, me respondeu uma delas. Em 15 de março a Espanha iniciou o bloqueio nacional. No dia 20, quando chegaríamos ao país, superou os mil mortos. Em 25 de março, já era o segundo com maior número de vítimas fatais no mundo, atrás somente da Itália. Dois meses depois da data em que terminariam nossas férias, voltei a receber mensagens e e-mails com promoções de viagens. ‘É tempo de… sonhar, planejar e em breve viajar’, diz um deles. Parece tudo igual, mas não é.

Ainda é estranho pensar que passamos meses achando passagens pelas quais pudéssemos pagar, pesquisando as melhores opções de hospedagem com bebê, montando o roteiro de carro, planejando reencontrar gente querida e, de um dia pra outro, nada disso era possível. Decidi, ainda assim, tirar uma semana de férias. Foi a mais fácil até aqui, talvez por ser a primeira, possivelmente por ter me mantido o mais longe possível do noticiário - tarefa impossível no restante dos dias, quando a natureza da profissão me obriga a mergulhar sem emergir no esgoto que se tornou o que precisa ser noticiado. Naqueles dias, no entanto, ainda era difícil imaginar como seria passar meses praticamente sem sair de casa. Não sabíamos o limite entre a organização e o desespero. Fizemos listas de compras insuficientes, que exigiam saídas mais frequentes do que o necessário. Aos poucos, fomos nos adaptando à nova rotina. Chegou o dia em que um dos porteiros do prédio interfonou só pra saber se estava tudo bem. Me dei conta de que sumimos, apenas. Parece tudo igual, mas não é.

O barulho tão comum no centro de Porto Alegre foi se fazendo cada vez menor. No começo, chegava a ser esquisita a ausência de vozes e risadas na calçada movimentada noite adentro. Logo virou o novo normal. Nas raras descidas, bares e lancherias com fitas de isolamento, mesas recolhidas e poucos funcionários. No rosto, máscaras e olhos apreensivos. Mas esse novo normal também se foi. Na semana passada, um decreto municipal permitiu que bares e restaurantes reabrissem. Muitos outros serviços já haviam sido retomados. Havia quem acreditasse que não seria o suficiente pras pessoas saírem de casa sem necessidade. Parecia o óbvio quando o país já tinha mais de 20 mil mortos e 300 mil infectados. Mas não foi. O burburinho na calçada voltou, misturado aos carros, às obras, ao caminhão de lixo que ganhava protagonismo quando todo o resto era silêncio. Parece tudo igual, mas não é.

Flora já tem cabelos que podem ser presos em colinhas. Fala dúzias de palavras. Sabe o que são vídeochamadas. Lembra dos membros da família por grupos de nomes que repete volta e meia, canta trechos ou completa palavras de várias músicas. Escala sozinha o sofá, pula pra poltrona, desce da cama, se pendura no peitoril da janela. Isso tudo aconteceu desde que nos fechamos em casa. Parece tudo igual, mas essa criaturinha efervescente ao nosso redor nos faz ver que não é.

Um comentário:

  1. A minha realidade, apesar de essencialmente diversa - não tenho filhos, e vivo sozinho -, tem, por incrível que pareça, inúmeros pontos de contato com a descrita nesse belo texto. A inacreditável e inédita insuficiência das 24 horas de um dia para se dar conta das tarefas de casa, por exemplo.

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