Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

27.5.20

Dia 71: por Annie Müller

Faz tempo que eu não sei exatamente quando começa o dia. Estou num ciclo repetido de ser alimento da cria, experiência materna que além de nos tornar os animais humanos que somos, também nos confunde noite e dia.

Penso que, hoje, a Helena acordou perto das cinco da manhã, pois ainda estava escuro. Mamou peito, capotou. Estou evitando ligar o celular durante o nosso momento, afinal, é o nosso momento, por isso não sei que horas ela acordou. Quando a mamada se estende e eu quase caio no sono com a bebê no colo, então prefiro pegar o Kindle no lugar do celular. O celular abre espaço para o mundo inteiro, e nos dias de COVID-19 é preferível resguardar as notícias para depois da simbiose mãe e filha. O Kindle salva. Eu havia deixado o dispositivo de lado há quase dois anos, quando concluí o mestrado. Na época, usei bastante, especialmente para ler os teóricos (sou mestre em escrita criativa). Mas, desde que a Helena nasceu, o Kindle é uma companhia nas noites, me possibilita ler mais do que eu conseguiria se estivesse limitada ao livro de papel. Tudo isso porque ele tem luz e não preciso acender a luminária e incomodar o homem que dorme ao lado nem a bebê que está grudada na teta. Além disso, posso manipulá-lo e mudar as páginas usando apenas uma mão, enquanto a outra segura a Helena. Aperto o botãozinho, a mágica acontece. O Kindle é silencioso, discreto, estou apaixonada (sou publicitária, caio logo num merchandising natural sobre produtos que aprovo). Abro num livro facinho, leitura que não exige muito, mas me deixa feliz. Nessa madrugada quase dia, escolhi um texto budista de um dos tantos mestres Rinpoches, que eu adoro. Mas também Caio Fernando Abreu tem me acompanhado. Venho preferindo contos faz tempo. Os romances, ah, os romances são privilégios da vida sem tantos filhos (tenho três com menos de três anos).

A minha leitura mudou muito desde que me tornei mãe, mais ainda na quarentena. Não somente eu mudei com o isolamento necessário: os meus jeitos de fazer as coisas mudaram. Leio trechos, pauso, parto para outra atividade. Tarefa em cima de tarefa e a noite vira dia. Desperto de novo pelas sete. Alimento a cria, depois ainda faço meu último sono matinal. Nove horas e o despertador vem em forma de canção do outro quarto: ‘ ia-ia-ô, o seu lobato…’. São dois meninos, gêmeos, que despertam ao mesmo tempo, desde que nasceram (impressionante a conexão entre gemelares, ela existe mesmo e não é crendice popular). Os garotinhos nos chamam: “mamãe, papaiii”, e o meu marido busca os dois ao mesmo tempo; ainda dormem em berços e precisam da nossa ajuda. Ele traz os meninos para a nossa cama e viramos um amontoado de humanos sem hora para sair do ninho (vantagem da quarentena). Brincamos, rimos, nos beijamos, os gêmeos começam a se empurrar e lutar pelo espaço preferido da cama — o meio, entre os dois travesseiros "gandes”. Arthur logo nos deixa, saindo para a sala, resmungando pela mamadeira, e o dia começa oficialmente ali, quando a calmaria e o silêncio são substituídos pela agitação e a lista mental dos afazeres do dia: mamadeira para eles, mate para mim, teta para a Helena, lanche da manhã — mingau, panqueca, o que desejam hoje?, brincadeiras pré-almoço, teta da Helena no almoço, sono da tarde, teta da Helena da tarde, lanche da tarde dos meninos — banana de novo?, brincadeiras que se limitam aos oitenta e nove metros quadrados do apartamento. Nos acostumamos a viver apertados, todos muito próximos, e poderia ser pior. Acontece que Arthur e Gabriel estão vivendo a fase dos dois anos, a chamada adolescência da infância, o que significa que estão (ainda mais) inquietos, rebeldes, irritados, agressivos. Sim, agressivos. Com o isolamento social, começaram a se bater a toda hora, a lançar objetos longe e já quebraram uns quantos. Quarentena também do prejuízo, a nossa. Eles sabem que existe um bichinho no ar. Um bicho que, agora, estão associando com a escola, para onde não querem voltar depois das “férias". Tratamos de falar pouco sobre o Coronavírus, mas as crianças pegam as coisas muito mais fácil do que julgamos. Crianças sentem antes, seres abertos que são. Seres que não pensam em nada muito grandioso, mas sentem muito grande. Tentamos falar, dialogar, mas além do medo do bichinho no ar, eles também sentem a falta do pai, que continua trabalhando, gerenciando a tele-entrega dos restaurantes para (tentar) não se afundar na crise. Ainda assim, será difícil sair dessa sem se endividar para pagar as contas e honrar as pessoas que trabalham com ele. O Coronavírus é, primeiro, uma crise sem precedentes na saúde, claro. Mas ele nos testa não somente o corpo físico, mas o mental. Não saber o dia de amanhã é o mais louco de tudo. As campanhas publicitárias nos dizem que “vai passar”, e tentamos quantificar esse tempo, em vão. Aqui em Porto Alegre alguns muitos já se vão às ruas, inclusive sem máscaras, mas a minha família escolheu se manter quieta para cuidar de si e da vida dos nossos pares. Porque mesmo quando sairmos de novo para a rua, estaremos ainda menos seguros do que já estivemos e mais cautelosos e solidários do que nunca. Assim espero. Que a transformação aconteça a começar por nós mesmos.

O vírus se transforma a cada dia, dizem os especialistas. E a gente também. Estamos mais ansiosos, mas talvez mais criativos. Mais sensíveis, me parece, e por isso empáticos. Ligamos para os nossos amigos e familiares a toda hora. Oferecemos ajuda, nos cuidamos. Afetos surgem como bolhas de sabão lançadas pelas crianças: voam e enchem de brilho e frescor o nosso arrastado período de confinamento. Na nossa casa, oscilamos entre nervosismo e aceitação, paciência e compaixão, desânimo e esperança. Tentamos nos deslocar para aqueles que vivem situações tão mais difíceis. Mentalizamos pela saúde de todos. Agradecemos pela nossa matilha. Quando já é noite, bastante tarde, depois das dez, e nos sobram alguns minutos, meditamos, com as crianças no colo, quase adormecidas, ao som de um mantra poderoso.

Correm dias e noites e nos colocamos assim, em nosso clã, a nossa família a nos blindar das ventanias, conscientes da nossa miudeza e da força daquilo que não podemos controlar. Sinto a pandemia como tentar o controle sobre a nossa vulnerabilidade. Porque o mundo já tem gente demais e sorte a de quem escreverá mais algumas páginas de diários nessa existência.

Vou dormir pensando que estou com eles. Estamos vivos. Estamos aqui, juntos. Mais juntos do que nunca.

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