Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

30.5.20

Dia 74: por Aurora

Dia nem sei mais qual do isolamento.
Dia nem sei mais qual de desespero generalizado em ruas, salas de estar, cozinhas, mercados.
Dia nem sei mais qual de pura infelicidade e desespero interno - às vezes transborda e se torna externo.

Não apenas dói ver muita gente morrendo ao redor do mundo, e o resto assistindo, sem esperança do que fazer.
Mas dói ver pessoas próximas morrendo.
Pessoas próximas que não terão velórios ou funerais, pois é proibido o contato. 

Não é o pior, mas é ruim ficar trancado dentro de casa, com pensamentos que bloqueiam todo e qualquer estímulo de perseverança e alegria. É ruim ter de voltar a um lugar no qual não se sente segura em nenhum tempo. É ruim não conseguir dormir mais do que duas horas por noite. É ruim chorar de 6 a 8 vezes por dia.
Quem diria que meu olho direito lacrimeja mais do que o esquerdo? 

Mexo no cabelo, gravo aulas particulares para minhas alunas, envio meus manuscritos infantis para o trabalho - que agora não mais parecem fazer sentido, histórias com finais felizes em meio à histeria -, corrijo os textos dos quais fui solicitada, limpo a casa - afinal, é o que uma boa menina faz - e tento sorrir. 
Mais da metade faço por obrigação.
O resto faço porque preciso me distrair. 

Já é o décimo dia que minha avó e minha oma vêm visitar. Então é o décimo dia que sou obrigada a me ajoelhar no tapete da sala, rezar o terço inteiro, e em seguida, fazer uma reflexão bíblica com direito a queimação de uma folha de sálvia. Sabe-se lá para quê, mas minha avó diz que funciona. Então contenho a vontade de revirar os olhos e apenas a ajudo. Neste dia também comecei a pedir para Deus que ele tire da minha memória as coisas que aconteceram com meu corpo. Comecei a rezar incansavelmente, para que o passado se altere, e que nada daquilo tenha acontecido – e que não continue ameaçando acontecer. Troquei as “Ave Marias” por “Por favor, Deus, faça com que os dedos do passado não me segurem mais”. Troquei o “Pai Nosso” por “Eu imploro, tire toda a sujeira dos lugares que eu gostaria que estivessem limpos.”

Os pelos das coxas se eriçam todas as vezes que alguém entra pela porta, quando alguém me diz "boa noite", quando meu irmão tosse e eu fico no quarto com ele, para que consiga vê-lo respirar, e me certificar de que nada de ruim irá acontecer com ele. E os sinto cada vez que lembro que minha própria psicóloga interrompeu o tratamento, pois não é saudável continuar nestas condições.

Arrepiam os braços toda vez que a TV é ligada, que minha avó vem de uma caminhada na rua como se nada estivesse acontecendo; me arrepia toda vez que minha mãe me olha com cara de escárnio, e que meu pai grita para eu parar de ficar com rosto de choro, porque o mesmo incomoda as pessoas. 

Quando era pequena, me explicaram que quando você sente um arrepio, era porque um anjo passou perto. Todos eles devem estar dentro desta casa, então.

É o 12° dia que faço bolos, e que olho cuidadosamente a sopa batida no liquidificador para meu irmão comer. 

É o 11° dia consecutivo que não consigo parar de pensar em ganhar dinheiro de todas as formas e sair daqui.

É o 10° dia que começo a acreditar que realmente sou inútil como eles dizem.

É o 9° dia que tomo banho duas vezes ao dia para parar de me sentir suja. 

É o 8° dia que passo maquiagem todos os dias para esconder as olheiras.

É o 7° dia que tento focar em algo a mais do que olhar para as paredes e contar quantas tábuas tem no chão.

É o 6° dia que pego escondida a chave da porta do meu quarto e a tranco à noite.

É o 5° dia que paro de prestar atenção sobre como preciso casar logo.

É o 4° dia que paro de ouvir músicas, porque elas me remetem a algo que amo fazer, e que não posso e nem consigo.

É o 3° dia que planejo sair daqui, porque consegui dinheiro.

É o 2° dia que paro de rezar o terço, de conviver com a desculpa de que tenho aula, que tento manter minha sanidade mental o mais intacta possível para conseguir voltar.

É o 1° que escrevo sobre isso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário