Já são 87 dias em casa. Quase noventa dias de promessas não cumpridas e falta de ar. O corpo acostumado à dança sente em cada nova dobra as consequências de estar parado. As juntas enferrujam, subir a lomba para ir ao mercado causa arritmia e a posterior consternação que termina em dor de cabeça, com o pensamento involuntário: será que isso é um sintoma?
Tenho inveja daqueles que precisam acessar o calendário para ver em que dia estamos, habitantes que orbitam em seus planetas particulares vivendo seus infernos próprios. A Universidade cobra e já são mais de dois meses conseguindo escrever apenas sobre a pandemia e seus desdobramentos. Talvez eu consiga entender agora o cerne de narrativa de escritores que conseguiam escrever apenas sobre aquilo que viveram - enclausurados na realidade que só se liberta no papel. O som do despertador anuncia a aula, a reunião da semana e o encontro com o orientador. Horários simbólicos de um tempo sem nome, turnos que se atropelam em dias e noites, horários trocados de quem está acordada antes que o Sol insista em invadir a janela do quarto.
Eu queria falar sobre tanta coisa, especialmente sobre os casos de racismo que têm sido noticiados nos últimos dias e como eles desvelam problemas tão emergentes quanto a pandemia. Do menino João que foi assassinado pela polícia, das manifestações de #blacklivesmatter nos Estados Unidos, mas não dá.
Um amigo fez uma enquete pra escolher o nome da planta que ele adquiriu pra cuidar durante a quarentena. Um conhecido policial utilizou o argumento "nem todo o policial". No grupo de escritores, os colegas de profissão trataram a questão lembrando que "o racismo lá é pior".
Simplesmente não dá.
A pandemia só revela chagas abertas há séculos que se tornam menos importantes no passar de dedos na tela para a próxima notícia do momento.
É preciso se exercitar, arrumar a casa, adquirir novos hobbies, postar hashtags pra ajudar movimentos, não esquecer de disseminar o quanto se é contra injustiças e crimes.
Nesse enclausuramento forçado tudo que eu queria era ir pra rua pra quebrar tudo. Quero gritar.
Eu não consigo respirar.
Do lado de fora da bolha tem gente morrendo.
O mundo virou uma live.
E eu estou cansada de assisti-la.
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