Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

1.6.20

Dia 76: por Arthur Telló

Nas manhãs ensolaradas, o morador do prédio atrás do meu (seria ele meu vizinho?) senta-se de costas para a janela todos os dias às 10h. Ele vira-se de frente também e então vejo a barriga grande, inchada como um tambor, receber os raios de sol que dão à sua pele rosada um tom dourado, bronze. Ele fica quinze minutos de costas e cinco minutos de frente para o sol. Na sua pele há manchas vermelhas e amarronzadas em contraste com o fundo rosa. Entre 10h15 e 10h20, ele levanta-se e veste uma camiseta (em geral preta), e eu noto melhor o rosto bochechudo, a barba e o cabelo salpicados de grisalho ou os pelos da nuca que crescem e perdem o corte até ele sair da janela e desaparecer. Nos domingos, nas terças e quintas, meu vizinho assiste a filmes pornôs (sempre filmes com três pessoas, podendo ser duas mulheres e um homem, ou dois homens e uma mulher. Ele deve ser do tipo que aprecia variações entre personagens). No resto do tempo, ele assiste a programas de notícias.

Nunca o vi receber visitas.

“Fala mais baixo”, diz o meu vizinho no andar de cima. “Os vizinhos podem ouvir”. Param de ecoar os passos sobre minha cabeça. A esposa murmura qualquer coisa. “Calma”, ele diz, mas não entendo o que falam depois. No mês passado, eu e ele pegávamos elevador juntos para irmos ao trabalho. Ele, corretor de imóveis. Eu, professor. Há setenta dias, ele sai pouco de casa. A mulher caminha sem parar sobre o piso de parquet, muitas cinzas de cigarro caem no meu piso. Está muito nervosa. Já reclamei, mas agora tenho pena. Eu e ele tiramos o lixo ontem à noite e voltamos a dividir o elevador. Por trás da máscara, eu sorri, sei disso: minhas orelhas retesaram. Ele largou um suspiro profundo e lento. Estava mais gordo do que há trinta dias. Acima das sobrancelhas grossas e escuras, havia novas rugas de expressão, rugas que apareciam também ao redor dos olhos, opacos, e deviam continuar por sob a máscara. Tive vergonha do meu sorriso. Há noite, acho que ouvi a mulher dele chorar. Eu estava com uma taça de vinho na mão quando ouvi um Ah! mais agudo. A Gabi ia me dizer alguma coisa, mas levantei o indicador sinalizando para não falarmos. Quietos, ouvimos passos (dele? Dela?) aproximarem-se (de onde? Dele? Dela? Da estante onde está a carteira de cigarros?). Pouco tempo depois cinzas chocavam-se contra nossas janelas fechadas. Abracei a Gabi e bebi toda a taça de vinho.

Nenhum comentário:

Postar um comentário