Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

26.6.20

Dia 101: por Gustavo Czekster

O fim do tempo

O que faz com que um dia seja um dia? Ou melhor, o que faz com que 24 horas sejam plenas, pulsantes, repletas de acontecimentos, sons, reviravoltas, dissabores, alegrias, e que todas essas pequenas rusgas na realidade constituam um tempo tão bem vivido a ponto de ser chamado de “dia”?

Pergunto isso por que perdi um dia. Aconteceu em torno de três semanas atrás: imaginava que era quinta-feira, tinha uma agenda de atividades para cumprir na sexta e, no final da tarde, descobri que já estava vivendo na sexta. O que aconteceu na quinta-feira que perdi? Ou melhor, será que ela existiu?

Depois descobri que outras pessoas estavam passando pelo mesmo fenômeno, o apagamento do tempo. Dormiam de dia e tinham madrugadas ativas; almoçavam às quatro da tarde e jantavam à meia noite; confundiam as semanas, as datas comemorativas, os aniversários dos entes queridos. A quarentena apagou a noção de tempo passado e tempo a correr, além de ampliar o alcance do espaço, eis que estamos confinados nos cômodos reduzidos de nossas casas. Para mim, uma pessoa acostumada a acorrentar o tempo em relógios e calendários, a noção de estar vagando em meio à indefinição temporal é fonte de angústia: se eu não acreditar que estou vivendo no dia correto, em qual dia estou vivendo? Ainda estou no presente?

Desculpem a minha inconformidade, mas perder um dia é inaceitável. Sei que muitas pessoas dizem que perderam o dia fazendo algo chato ou maratonando uma série, fazendo pães artesanais, ficando na cama. No meu caso, perdi o dia de maneira tão completa que o apaguei da minha memória, e receio que nunca mais irei recuperá-lo. Ter essa aterradora certeza me fez perguntar quantos dias já não perdi no decorrer da minha vida, quantos dias ainda me restam. Não temos uma cornucópia infinita de dias, eventualmente iremos chegar ao nosso último. A quarentena trouxe consigo o desconforto de colar um dia no outro, uma semana na outra, um mês no outro, até que o tempo cronológico se tornou uma grande borra de acontecimentos insossos. Foi incrível notar o quanto somos pautados pelos encontros, e o quanto os nossos compromissos, prazeres e a vida social acabam fazendo surgir o tempo.

Impossível não lembrar o início de “Preâmbulo às instruções para dar corda em um relógio”, de Cortázar: “quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar”. A quarentena nos liberou do inferno dos minutos, horas, dias e semanas a que estamos confinados: o tempo passou a correr devagar para uns e rápido para outros, pode se apagar por algumas horas ou ser dolorosamente presente em outras. É capaz de fazer os anos se acentuarem ou retardar o surgimento das rugas. A quarentena transformou tudo, inclusive a nossa saúde, em uma incógnita; mais do que nunca, agora, somos nosso próprio tempo.

Foi possível observar uma mudança gradual durante o período de isolamento: desde a euforia dos primeiros dias, quando as pessoas se entregaram com volúpia a fazer cursos, assistir filmes, comentar política, ler livros e pesquisar sobre o vírus, até que, com o passar do tempo, a rotina começou a impor suas regras sufocantes, esmagando-nos por completo entre as suas impiedosas engrenagens. As horas deixaram de passar; todos os dias tornaram-se o mesmo. Um dia não aproveitado continua sendo um dia? Ou não passa de um acúmulo enfadonho de minutos? Se for assim, pobre desse Deus incauto que, ao criar o Universo, se condenou a uma eternidade de dias iguais, modorrentos, chatos: criou o seu próprio inferno.

Alguns otimistas dizem que o vírus vai deixar a humanidade melhor, mais centrada, mais disposta a pensar no próximo – não foi o que vimos até agora. O vírus parece ter despertado as bestas que moravam escondidas nas frestas dos pensamentos, e o mal sempre é mais divulgado do que o bem.

Em um texto psicanalítico, leio que o coronavírus é o “vírus da solidão”: ele nos força ao isolamento social; impede-nos de encontrar as pessoas amadas, os amigos, os familiares; ele segrega avós dos seus netos. Depois de contraído, o coronavírus continua isolando: os pacientes são presos em alas específicas, das quais existe a grande possibilidade de não saírem vivos; não podem se despedir dos familiares; estão cercados por pessoas desconhecidas trajando roupas especiais; não lhes permitem sequer tocar outro ser humano. Após a morte, ainda há um último e cruel isolamento: enterros vazios, familiares distantes, menções de nomes em um que outro boletim, a transformação de uma pessoa em um número frio dentro de uma estatística insensível. Não somos preparados para a solidão.

A quarentena encaminha-se para um fim, de certa forma, melancólico. Não por causa da aguardada cura, mas por que as pessoas preferiram deixar tudo nas mãos da sorte. Enquanto as estatísticas gritam mortes e apregoam a necessidade de um pouco mais de proteção ainda por algum tempo, as pessoas sentem-se abandonadas pelo governo que deveria protegê-las e preferem rolar os dados, confiantes em serem bafejadas pelo Destino. Talvez o vírus não entre na nossa casa, talvez a Morte vá espreitar a vida de algum vizinho. Talvez não seja tão grave quanto dizem, talvez a cura surja na forma de um remédio corriqueiro. Talvez o governo minta, talvez os jornais mintam. Cercados de incertezas, caminhamos sobre pilhas de mortos, fazendo de conta que não escutamos o estalar dos ossos que espreitam nossos passos culpados, nossas aglomerações, voluntárias ou não.

No entanto, a minha quinta-feira continua desaparecida. O que fiz nela? Qual a vida que tive nesse dia? Às vezes, acordo no meio da madrugada, ainda sacudido pela instabilidade do tempo cronológico que deixei de contar com a precisão (falsa) de um relógio suíço, e observo os prédios ao redor. Várias luzes acesas, pessoas caminhando de um lado para o outro, algumas delas paradas na janela: somos uma legião de desorientados. Como eu, talvez estejam procurando dias perdidos. Mas as respostas – todas elas – estão na literatura, é só uma questão de procurar, - e Faulkner disse qual a verdadeira função de um relógio, esse “mausoléu de toda esperança e de todo desejo”: “Dou-lhe esse relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo seu tempo tentando conquistá-lo”. A quarentena também nos ensinou a esquecer que o tempo existe.

2 comentários:

  1. Parabéns, mais um conto em que dizes tudo aquilo que muitos querem dizer!

    ResponderExcluir
  2. "... o mal é sempre mais divulgado do que o bem." Verdade. Bom que tem gente que pensa ainda pensa em mal e bem. O pós-modernismo não ganhou, não é tudo igual.

    ResponderExcluir