Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

25.6.20

Dia 100: por Elisabeth Abreu


Já peço meu primeiro perdão desde o início, porque sei que sou pipa demais para escrever um bom diário.

Estou mal e porcamente presa ao chão. De poucas convicções, uma é que o tempo é o vento, passa sem ninguém ver e só se sente quando pausa... e estabacam-se as pipas no chão. Esse, aliás, é um desses raros momentos de estabacamento, se tudo der certo. Outro perdão requerido: eu tenho medo do chão. Por favor não me façam ficar muito tempo no chão, eu não aguento. Chão duro é desgraça demais para meu corpinho de bambu e rabiola. Quero ficar longe, longe... onde o tempo passa e eu fico lá, voando no mesmo lugar.

Nessa missão de marcar ao menos um dia num diário, tenho a chance de ouro, para mim, pelo menos: amarrar essa corda solta em um ponto fixo, uma vez na vida. Ter certeza do hoje para depois me lembrar que, por mais que pareça, não estou suspensa num tempo pré-tempo de lenda, sem início nem fim.

O que são cem dias? Não sei. Cem vezes nascer do sol, sem vezes para se nascer sol nenhum? Devo ser sincera e dizer que vejo o sol cruzar de ponta a ponta da minha janela, quando as nuvens assim me permitem. Então, podem confiar, ele ainda existe e está lá. Mas então outra confissão... de uns tempos para cá eu tenho visto o quadrado da minha janela cada vez mais como uma moldura. Aos poucos meu quarto vira um museu meio deprimente. A paisagem que eu vejo vai terminar de virar uma pintura qualquer dia desses, e infelizmente, é uma pintura meio feia.

Mesmo que cá na cidade o sol seja enquadrado por prédios, paredes, antenas, guarda-chuvas ou olhares para baixo, eu sempre baseei minha noção temporal no nascer e pôr do sol. Nada inovador, eu sei, e tampouco consciente. Tanto é, que passaram noventa dias para eu entender que não havia passado nenhum, de verdade. Se foi por o sol não ter nascido ou por eu não ter vivido, fico suspensa e sem resposta.

Pergunto de novo: o que são cem dias? Eu não levantei cem vezes, não rabisquei nem escrevi nem escutei nem toquei flauta cem vezes, não vi cem filmes e séries e animações, não tentei me alongar nem me esforçar nem liguei cem vezes, não li contos e contas e artigos e relatos cem vezes, não comecei projetos, não desisti de projetos, não fiz contato, não faleci de tédio nem de medo nem de saudade cem vezes. Não, porque o sol do primeiro dia nem sequer se pôs ainda. Eu não o vi ir, nem vir, então ele não foi nem veio...certo?

Talvez seja só a consequência cósmica e melancólica do pós-solstício, essa certeza de que o tempo agora não se marca e sim vagueia em Hiperbórea até o meu aniversário lá no equinócio. Sim... uma estação segue a outra, sunrise, sunset, logo o ciclo volta a fazer sentido. Ainda vou me convencer que o tempo só começa na primavera de novo. Mas como vamos chegar na primavera se o tempo não passa? É até irônico, mas se o tempo é o vento, e ele parou, como que ainda estou voando presa no mesmo lugar? Suspensa de novo, sem resposta.

É por isso que eu não faço diários. Estabacamento é um negócio delicado. Talvez eu deva recomeçar, deixar as coisas mais concretas. Ou tentar. Vamos lá:

Paro o que estou fazendo e medito, recomeçando. Que dia é hoje? Sim, já falamos sobre isso, é o centésimo. Não, é o primeiro ainda. Estamos no canto primeiro, chuchu. Tá, mas é vinte e cinco hoje. Já se passaram cem páginas. Mas como? Quando que a história anda? Ela tem andando, e bastante. A corrente, se não meu barco, joga uma frota inteira nas pedras. Onde estão essas pedras? O mar é ilusão, são tudo pedras, é só uma questão de profundidade... no fundo no fundo, até a menor delas quebraria esse barquinho. Só que aqui onde eu tô, o mar não é raso, ou não está. Que sorte. Será que o horizonte está tão curvo que não dá mais para ver? É uma odisseia estática, e na melhor das hipóteses, sem intercorrências... é isso?

Alguém amarra a alegoria na âncora e a âncora nas Fossas das Marianas, por favor. E que fossa, nossa. Não, tangente, pode parar.

Que desventuras nesse meu barco-pipa à deriva, que desventuras nesse primeiro-ou-centésimo dia? Bem, o barco está bem, seus navegantes estão... bem, surpreendentemente bem até, eu diria. O horizonte parece o mesmo, bem curvo, só mais nublado quase não vejo outros barcos. As janelas, abertas porque está abafado, e fechadas porque está chovendo, e abertas de novo porque precisamos ver o que está acontecendo no mundo. Mas não era uma pintura esse mudo? Qual a realidade de olhar pela janela ou pela janela do computador? Como disse, na melhor das hipóteses, sem intercorrências. Se é tédio, uma vocação para pitonisa ou pra mênade que vão decorrer de nada decorrer, só o tempo para dizer. Isso, quando ele voltar a andar.

3 comentários:

  1. Muito consistente, bem escrito, algo do tipo que nos leva do principio ao fim do texto....mas que jnduz a reflexões mais aprofundadas do que essa pandemia impôs a todos de forma inimavinavel! Parabéns pelo texto !

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  2. Excelente texto Bebeth.

    Parabéns, Jari.

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