Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

27.6.20

Dia 102: por Marcelo Coelho da Silva


Inebriante

Já se passaram 85 dias desde o início da pandemia. O estado de emergência foi decretado em Porto Alegre no dia 17 de março, desde então, eu também me encontro alerta. Passei a beber com mais frequência, até evoluir para diariamente. Por noites tenho apelado para o chocolate. O doce é inebriante e também me fornece bem estar. Racionalizei a situação e decidi não comprar mais chocolates. Tenho estado sozinho. Falo sozinho. Tento cantar. Reviso os quartos vazios dos meus filhos todos os dias. Sozinho, gastei uma barra de sabonete inteira, mas ainda não consegui acabar com o xampu.

Há 37 dias, seis horas, 17 minutos e 47 segundos não toco em ninguém. Trinta e tantos dias em que ponho o pé dentro de casa, ligo a televisão, vou tomar banho e janto em minha auto-companhia. Preciso de algum ruído além dos meus próprios. A Miche e as crianças estão bem longe, em segurança. Alegrete, no interior gaúcho, é um oásis se confrontada com a Capital e é um paraíso se compararmos à situação brasileira.

As matérias jornalísticas são insalubres e povoam telejornais, rádios, jornais, sites de notícias. A realidade é deletéria desde a sua negação até o seu sensacionalismo. As notícias só não são mais infames e anacrônicas do que o Presidente da República. Como último ato, ele achou por bem mandar suprimir informações de mortes acumuladas dos atuais boletins epidemiológico-militares do Ministério da Saúde. Isto em um país onde há uma subestimação monstruosa de casos pela falta de testagem dos doentes. Talvez ele deva acreditar que pessoas mortas e não contabilizadas são pessoas “não mortas”. Mas, se também são pessoas “não vivas”, então serão zumbis? Sei lá o que se passa naquela cabecinha vil. Em plena era da informação, alguém acredita que estes dados irão desaparecer? Nem a indigência será empecilho a essa resposta. Contudo, a cena nacional tem evoluído num roteiro digno do Monty Python. O histórico de atleta do nosso mandatário máximo, que o deixou imune ao coronavírus, ajudou-o a demitir um ministro da justiça e dois da saúde em meio ao caos sanitário. Temos pexotadas, temos bizarrices em “entrevistas” diárias. Ainda bem que os internautas registraram, e estão registrando, aquelas falas para todo o sempre. O nosso país está sendo elevado a uma categoria de chacota mundial.

Desprezando a raiva, deixemos a política pra lá um pouco. Vamos aos números. Segundo sites independentes, no placar da Covid-19 no Brasil, temos 38.497 mortos, 742.084 casos confirmados, uma taxa diária girando em torno de mil óbitos e, em letras garrafais nos scouts do Governo, são 311.064 pacientes curados. Estamos ganhando de lavada, minha gente! Só que não...

Aqui em Porto Alegre a situação parece estar mais controlada. Os números totais de pessoas que perderam a vida para a doença são considerados baixos (48) e o sistema de saúde está suportando bem. Parte da população, aquela mais fervorosa, parou de nos acusar de que estaríamos levando a cidade à falência. O comercio está reabrindo. Os shoppings voltaram a ser palco de clientes ululantes. Sôfregos a consumir, eles devem ter rogado a algum Santo atlético. São Paulo Cintura, rogai por nós!

Eu achei uma aposta arriscada. Mas o quão chata seria uma vida sem riscos, não é mesmo? Dizem por aí que o vírus do desemprego é pior do que o da doença. Fiquei pensando nisso. Empregos são perdidos desde que o mundo é mundo, mas só perdemos a vida uma única vez. Eu já fui demitido (umas três vezes) por diversos motivos. Consegui dar a volta por cima porque tinha uma família, que me suportou, e porque tinha S-A-Ú-D-E para suportar.

Na minha função de fiscal da Vigilância em Saúde, um dos objetivos do trabalho consiste em ações de prevenção para que as pessoas não precisem de hospitais. Logo no começo, acreditava que o primeiro mês de pandemia seria o pior. O que foi um erro grotesco, e estou com medo de qualquer antevisão do futuro.

Até aqui, enfrentamos muita coisa pesada, onde a morte esteve por perto. A morte e a ignorância. A ignorância e a mesquinharia. A mesquinharia e a ganância. A degradação humana vem de eras. Havia trabalho análogo ao escravo, resultante de relações de poder desequilibradas, e garis submetidos ao descalabro humano. Houve quem enxergasse oportunidades de lucrar com a pandemia oferecendo um drive thru para coleta de exames para Covid-19. Até aí, tudo bem, se não estivesse sendo utilizado o estacionamento do condomínio em que se localizava o laboratório. Imaginem o Seu Fulano, terapeuta holístico, chegando para trabalhar e sendo recepcionado por um astronauta na garagem. Também foi preocupante o caso de uma empresa terceirizada para a coleta de lixo hospitalar da cidade. Os trabalhadores paramentados descarregavam as bombonas de lixo infectadas e, junto a esta área de contaminação, podiam beber água filtrada por um equipamento com três torneiras. E, se quisessem relaxar um pouco mais, tinha também uma garrafa térmica com café adoçado que poderiam sorver em copinhos plásticos dispostos em cima do filtro. Tudo isso é impressionante. Mais do que isso, é impensável.

Teve uma inspeção que vale contar com detalhes. Foi a do cemitério. Por ironia, o mesmo cemitério católico onde os meus avós paternos estão sepultados. Era uma demanda banal. Alguém reclamando de que os funcionários do cemitério não tinham álcool em gel, não usavam máscaras, não faziam distanciamento das pessoas, não, não, e mais não. Enfim, pensei em aproveitar a oportunidade para fazer uma visitinha a Vovó e Vovô. Porém, eu sofro do “mal do fiscal”, e comecei a elaborar hipóteses: E se eu encontrar algum velório? E se a capela estiver lotada? E se o falecido testou positivo para o novo coronavírus? E se o caixão estiver aberto? Pois então, o meu sangue começou a circular frio pelas veias. O pior é que o “mal do fiscal” não termina por aí. Na minha cabeça, produzi respostas aos questionamentos hipotéticos: Vou ter que averiguar o velório. Vou ter que mandar as pessoas chorarem em casa. Vou ter que perguntar à viúva (ou viúvo ou filho ou neto) do defunto se a (ex) criatura morreu de Covid-19. E, como todo o “mal do fiscal” não termina bem, vou ter que mandar fechar o caixão e enterrá-lo de imediato. É aterrorizante esta ânsia dramaturga. Então, eu fui até o endereço denunciado. Confesso que suava ao entrar no cemitério, apesar de ser um dia frio de outono. Havia uma névoa suspensa no ar, e o silêncio era indefectível. Em linha reta, dirigi-me ao setor administrativo. Rapidamente, o gerente de vendas e atendimento ao público (descobri que cemitério tem gerente) me deu a notícia. Relatou com uma voz assustada que, naquele dia, não havia nenhum velório. Terminada a inspeção, decidi ir embora o quanto antes. A visitinha aos meus avós ficou para outra oportunidade.

Agora, estou há 37 dias, seis horas, 30 minutos e 12 segundos sem tocar em ninguém. A televisão continua a matraquear. Enquanto a minha família estava aqui comigo, eu podia tocá-los, dar e receber abraços, trocar um pouco de calor humano. Tento me convencer de que eles estão mais seguros onde estão e que eu estou bem. Posso trabalhar tranquilo sem a preocupação de trazer a doença para casa e infectar as pessoas que amo. Sou um adulto racional. Até gosto de ficar sozinho e...  Que estupidez! A quem eu pretendo enganar? Não estou preparado para este tipo de solidão. Não estou.

Tentei participar à distância da vida deles. Fizemos vídeo-chamadas, trocamos áudios, fotos, mensagens, mas parece que falta alguma coisa. A minha esposa se desdobra para manter a nossa proximidade. Apesar dos esforços dela, os detalhes se perdem. Aquele sentimento espacial de completude não está disponível para mim. Eles não estão nem na minha visão periférica, nem naquele contato de almas que se tem sem sentir. Falta presença, em todos os sentidos. Eu nunca havia estado assim tão frágil.

Meu filho cresce a olhos vistos. Tem só quatro anos. Ele é argumentativo, engenhoso, persuasivo ao extremo advogando em causa própria. Fala comigo ao telefone com desenvoltura. Papai, eu fiz novos amigos hoje! Pergunto do que brincaram. Eu escalei uma árvore sem ninguém ajudar. Queria que tu visse! O papai não conseguiu mais responder.

A minha filha, na última vez que a vi tinha três dentinhos, agora tem quatro. Está começando a falar. Oi, não, tchau, Tetê, mamãe, papai. Pede papá, indica que quer aguinha. Adora fazer bagunça com o mano. Fala papai para tudo, e aponta para a tela do celular. Menina de sorriso fácil. Sempre sorri quando me vê, joga-se para trás encobrindo o rosto com as mãozinhas (fazendo-se de envergonhada). Já possui trejeitos que são somente dela. Mal caminhava, agora corre e anda com firmeza. Eu não estive por perto. Dela, eu perdi coisas demais.

Além das crianças, eu sinto uma falta terrível do abraço da minha mulher. Virei um taciturno horripilante vagando pela casa. Penso nela e, como se imergisse dentro de mim, transporto-me para encontrá-la. A sua boca, o seu hálito, o brilho em seus cabelos, as suas curvas sendo percorridas pelas minhas mãos. Desperto por noites a fio, estendo o braço, e não a encontro. Seu lugar na nossa cama está gelado. Desabo no silêncio. Na minha cabeça, um zumbido vazio me aturde. Só escuto este maldito zumbido! Sinto uma dor de cabeça cansada e lágrimas fugidias, ultimamente.

Não sei o que ainda teremos de enfrentar aqui em Porto Alegre. E isso me preocupa, pois o retorno da minha família é incerto. Nesta semana atendi dois surtos da doença, um com oito, outro com cinco infectados. Lugares tão distintos quanto o revólver e a reza, mas por iguais insurgentes. Os números de casos e de óbitos causados pelo sars-cov-2 têm aumentado, e ainda tem gente capaz de negar a realidade. Meus colegas epidemiologistas revelam que os surtos estão aparecendo em toda a Capital, e ainda existem os sabichões que não acreditam na pandemia. Preferem não assistir a Globolixo (sic). É, simplesmente, inacreditável. Como se o problema maior fosse a notícia (em seu viés), e não a capacidade pessoal de interpretação da mensagem.

A solidão me facilita a pensar em tudo. Chega num ponto em que o cansaço vai se transformando em raiva. Achei que a minha se dava só no campo político, mas nada é só. Estou cansado desta gente fraca. Minoria que parece multidão. Gente fraca sem um pingo de empatia, sem uma nesga de solidariedade. Gente estúpida! Pessoas sem respeito! Enquanto uns adoecem, outros se divertem. Enquanto uns morrem, outros fazem festinhas proibidas. Isso não é rebeldia, crianças! Vocês se aproveitam de uma situação para a qual não estão contribuindo. Ficam bêbados entre amigos. Vão pescar, fazem churrascadas, riem até vomitar, tomam mate ao pôr do sol. E o meu rosto está marcado de tudo.

Agora, estou bêbado e sozinho. Ganhei olheiras, que ganharam vincos no meu rosto marcado pelas máscaras. Vincos desenhados até as orelhas. Sulcos pelos quais escorri saudades ao acordar à noite. São verdadeiras cicatrizes que me acompanharão no espelho.

Li em um livro do autor espanhol Javier Cercas que o ofício de escritor é muito filho da puta. Pois o bom escritor torna visível o que já é visível e ninguém quer ver. Aquela realidade desconfortável, que as pessoas desejam negar, o escritor a desnuda usando o dom da escrita como escudo para não enlouquecer. Para Cercas, e eu concordo, ao enxergar a realidade, um escritor nunca mais deixará de vê-la e terá de conviver de modo pacífico (se conseguir). Fiquei pensando nas coisas que vi e no que estou (e estive) fazendo. Eis que tenho dois ofícios filhos da puta. Tenho que trabalhar pela saúde dessa gente fraca também. É muita empáfia minha achar que sou escritor. Talvez eu me torne um daqui a alguns anos. O fato é que me sinto melhor depois de descarregar por aqui as angústias dos últimos dias. Posso não ser um escritor, mas já estou utilizando o escudo.

Estou há 37 dias, seis horas, 39 minutos e 27 segundos sem tocar em ninguém.

15 comentários:

  1. Sentipensar amigo querido, contigo senti embalada pelo teu texto lindo!

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  2. Estou sem palavras... As poucas foram enviadas lá pelo Facebook! Lindo texto da grandeza de quem é sensível e talentoso. Um abraço e te cuida bem pra receber a família de volta quando tudo isso acabar! 😘

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    1. Obrigado querida! Seguimos na luta sem nos descuidarmos do que nos faz bem! Te cuida também! Bj

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Muito bem escrito e descrito! Força Marcelo!

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  5. Maravilhoso texto amigo Marcelo.
    Compartilhei no Facebook para que meus amigos leia.
    Queira Deus seja encontrada uma vacina para tds os humanos possam se abraçar novamente. Abraço.

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  6. Gostei muito do seu relato! Cada contexto de cada pessoa é um pedaço da realidade que vamos juntando e assim ampliando nossa perspectiva desta insólita experiência coletiva.

    Escrevi também aqui no diário, meu dia é o 99.

    Com licença pra fazer só uma pontuação a respeito do termo 'filho da puta'.
    Mais do que nunca, estamos todas e todos ficando mais atentas(os) ao uso da linguagem em referência às categorias sociais (e as minorias de poder) que sem querer podemos atacar.
    Sexismos, racismos e todas as homo,bi,trans,lesbofobias devem ser combatidas.
    Sugiro que não usemos a naturalizada expressão 'fdp', tão naturalizada que as pessoas não se dão conta do que estão reiterando quando a proferem.
    Afinal, porque usar as putas ou suas filhas ou filhos para insultar algo ou alguém> Repensemos!

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    1. Obrigado pelo seu comentário! Fiz uma citação do livro A Velocidade da Luz (Javier Cercas) e fiquei preso a ela. Não me dei conta do chamado "preconceito estrutural". Espero que a expressão não lhe tenha estragado o sentido do que foi escrito. #chegadepreconceito

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    2. Oi Marcelo!
      Obg pela conversa. O sentido não se perdeu não.
      Reconheço q fico impactada com todos os textos em q encontro, esta e outras expressões naturalizadas na nossa cultura.
      Dependendo de que local do texto as encontro, às vezes abandono a leitura do restante.
      Não foi o seu caso, já q me deparei com elas ao fim. Ainda bem!
      Sigamos escrevendo e problematizando por um mundo melhor. Felicidades...

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