Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

2.6.20

Dia 77: por André Santos

Vou tirar de letra, pensei. Vai ser suave. Eu sou muito caseiro, então não vai ter problema nenhum. Quando a quarentena começou, eu não senti a diferença na transição. Um ou outro compromisso foi cancelado, sim, mas isso só me deixou aliviado. Vou poder ficar em casa, pensei.

Hoje, eu perdi a noção do tempo. Não só de quanto tempo faz que tudo começou, mas de quando está claro ou quando está escuro sem olhar para o relógio. Lembro, mais ou menos, de quando comecei a “virar a noite”, e depois quando comecei a acordar no meio da noite, e de quando meu horário voltou ao normal porque eu agora estava “virando o dia”. Eu estou virando a virada.

Me peguei jantando as cinco da manhã várias vezes e, tentando computar as experiências auto impostas, descobri que, apesar de estar bastante tenso, eu sou resistente à privação do sono até certo ponto. Ainda conseguia fazer exercícios físicos, já os exercícios mentais... Eu não consigo me concentrar muito nas leituras e nem na escrita. Hoje eu estou me forçando, tentando ajustar os horários, mas ainda está complicado.

Meu banco tentou me matar duas vezes nesse meio tempo, me arranjando problemas para resolver com a minha conta, e foram essas as duas vezes que tive que sair para algum lugar que não fosse o mercadinho. Uma delas foi hoje. Lá estava eu no ônibus lotado, sentindo receio mais por aquelas outras pessoas do que por mim. Tenho parentes que trabalham em posto de saúde, minha mãe é uma delas. Eu sei como a situação está complicada. Eu escrevi um texto a pedido deles. Me agradeceram muito, principalmente a psicóloga que trata o pessoal.

A tia e o tio do mercadinho, por sinal, sofrem as consequências de serem minha única interação pessoal. Eu tento tirar o melhor dessa situação, pois ao menos tenho saúde, tenho casa e sustento. Como sou brincalhão, não tem um dia que eu não finja estar tentando roubar um pacote de salgado com ele enfiado dentro da roupa, e eles ficam rindo de mim enquanto tento escapulir com aquela protuberância saindo por baixo do moletom. Hoje vocês me pegaram, eu digo soltando o pacote e pagando por ele; mas nunca se sabe o dia de amanhã. No outro dia: qual o detergente mais caro que vocês têm ai?, eu pergunto. Oba! Vai abrir a mão! Aquele ali é o mais caro, eles apontam. Pois então me vê o outro.

E assim eu vou indo.

Eles começaram a controlar minha alimentação melhor que eu também. Estão limitando minha quantidade de bobagens e me instigando a comprar coisas mais saudáveis. Tudo sempre na base da brincadeira: bolacha recheada de novo?! Ah, não! Pode largar isso lá!

Faz muito sentido, né? Se privando de vender um pouco, eles garantem o meu bem-estar. Morto ficaria mais difícil de continuar sendo cliente.

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