Demorei três décadas para entender que minha maior fraqueza era na verdade a minha maior força. A sensibilidade que me fazia sofrer na infância é minha maior aliada no isolamento. Depois do terceiro dia de quarentena entendi que o tempo havia mudado a forma como a gente se relaciona, não pra melhor, tampouco para pior, só mudou. Cresci achando que ser sensível era ser fraco, entendo agora que isso me faz ver as belezas do mundo e me alimenta de uma poderosa vitalidade. O budismo fala que nossa cabeça é como um bando de cavalos selvagens, nosso trabalho é fazer esses cavalos andarem na direção que nos interessa, decidi que meus cavalos seguem aquilo que me favorece: música, natureza, ideias. Essa sensibilidade então me ajuda a presenciar cada dia, como uma nova experiência, achando as belezas no cotidiano.
Amo convívio social, sinto falta dos amigos e desde o início pensei bem em como passar por esta tempestade, sabendo que seriam meses e meses sem fim. Depois de um tempo, o próprio tempo entra em outra dimensão. Decidi ser um astronauta dentro da minha nave e viver a melhor experiência que poderia viver isolado de tudo que amo, ou quase tudo. Vi que nem tudo que amo está fora, me cerquei daquilo que gosto, aquilo que me faz bem, mesmo assim, percebi a fragilidade daquilo que nos é mais precioso: os amigos, as risadas, a família, o abraço, o sol… Como capitão da minha nave escolhi ajudar quem eu pudesse, seja com comida, com palavras, com ligações. Ser forte é ser empático, ser forte é ser gentil, ser forte é ter compaixão com a dor do outro. Ser forte também é chorar e se permitir ser vulnerável e carente. Nossa humanidade está de alguma forma ligada aos laços sociais tão simples e tão vitais.
O tempo se tornou como a realidade dos deuses: eterno. O astronauta do meu espaço entende a dimensão sem tempo, ironicamente ela nos dá a sensação do tempo infinito. Eterno é aquilo além do tempo, sem começo ou fim, isso pode nos deixar ansiosos ou despertar a liberdade interior, se estamos aqui e temos todo tempo disponível, o que podemos fazer? Liberdade de escolher e ansiedade pelas escolhas. Tento me focar naquilo que posso fazer, acho que ficar pensando no que nos falta só alimenta a angústia. Aproveito a solitude pra viver as coisas que me importam, falar com as pessoas que eu gosto, sem esperar o fim da pandemia, encarando a vida como é, pois ela nunca mais será como era e não temos ideia do que nos espera quando passar. Viver o dia de hoje da melhor forma que puder, é o que penso ao acordar, sendo o astronauta do meu apartamento. Quanto do universo a gente tem na nossa cabeça? Será que é a falta de sair que nos angustia ou é ter que olhar pra si mesmo? Me gosto, me cuido e me faço companhia, nem todo dia estou bem humorado mas sempre me respeito, me perdoo diariamente por não fazer tudo aquilo que ontem, em meio ao delírio da eficiência, achei que seria básico para continuar. Acho que solitário fica quem se abandona, passo os dias sozinho mas não me sinto só.
Se perdoar, se cuidar, sentir a sua dor e a sua alegria. Temos morte e também temos vida, temos dor e também temos alegria. Agora que não podemos sair, olhamos para dentro e tentamos fazer caber mais mundo na nossa cabeça. Como é nosso interior? Acho que a dor do isolamento vem da falta do outro, mas também da nossa falta de presença.
Cresci em uma casa onde nunca faltou comida e mesmo assim nunca saciei minha fome. Hoje vejo que o alimento que me faltava era da alma. Abracei minha antiga inimiga e agora ela é minha maior cúmplice, a sensibilidade me guia nesse mundo que se diz tão racional. Minha dor ou minha alegria vem de dentro, minha vontade de melhorar ou de continuar vem de dentro. Hoje eu me levanto, sabendo que muitos de nós se deitarão pela última vez. Hoje eu me levanto sabendo que o pouco que posso fazer no mundo, pode ser um mundo inteiro para alguém. Hoje eu me levanto, sabendo que não sei o que me espera no fim do dia, mas que viverei o melhor que puder, pois isso é tudo que terei. Às vezes tento ser o sol para alguém, nos outros dias sou apenas humano.
Gostei muito da imagem do astronauta para representar o isolamento. Outro dia vi dois astronautas em plena atividade numa live. Acho incrível esta disponibilidade de estar fora da terra. Na quarentena estamos dentro de nossas tocas (quem pode) numa condição nova e coletiva. A parafernália de máscaras e proteção do rosto e etc compõem este nosso estado astronauta de hoje. Que em breve possamos pousar salvas(os) e transformadas(os) !
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