Passo o café meio às pressas para não perder os últimos minutos de sol na janela da sala. Nessa órbita baixa de quase inverno, onze e quinze ele é escondido pelo prédio da frente. Isso me dá uns dez minutos. É suficiente para sintetizar a bendita vitamina D. Disseram que na maioria dos casos graves de Covid-19 as pessoas tinham déficit dessa vitamina, então todo dia venho aqui para a janela e estendo os braços com as palmas das mãos voltadas para cima. Vi num infográfico, é a técnica correta: palmas das mãos voltadas para cima. Eu sei que se der merda não vai adiantar para nada. Simples e fácil demais para ser verdade. Ainda assim faço sempre que tem sol, uma superstição para espantar o mal. Mesmo que não ajude com o corona, me faz bem. Mais luz. Dizem que o Goethe falou isso em seu leito de morte. Sei lá, faz sentido. Mais luz.
Angélica está no sofá dividindo a atenção entre a GloboNews e o celular. O paradoxo do isolamento e da hiperconexão, nosso coquetel diário de ansiedade, todo dia fresquinhas em sua casa notícias sobre o avanço da doença no mundo e do fascismo no Brasil. Na última semana as notícias estão melhores. Reação antifascista aqui e protestos antirracismo nos Estados Unidos. Mais luz. Na GloboNews tem um repórter falando sobre os atos da noite de ontem em Nova Iorque. É preciso que o telespectador saiba que os protestos foram pacíficos ao longo de toda tarde, apenas com o cair da noite é que as coisas foram tomando um rumo violento com saques e depredações, isso não representa o verdadeiro espírito das manifestações, é apenas a ação isolada de alguns black blocs. Eles insistem em categorizar black bloc como um movimento, devem achar que tem CNPJ e carteira de clube do assinante. Eu explico pro repórter que black bloc não são pessoas, é uma tática, o patrimônio da burguesia e do sistema financeiro pagando pela brutalidade policial, ele não escuta e passa a descrever uma vitrine quebrada como se fosse um legista redigindo um laudo de necropsia. É bem gráfico com os ferimentos que levaram a vitrine a óbito, os telespectadores podem ver aqui, aqui e aqui onde a vidraça foi atingida, mas felizmente pelo estado da loja não houve saque.
Mais luz. Eu olho para o sol por um milissegundo, o suficiente para deixar uma mosca volante no centro do meu campo de visão. Eu monto na mosca e ela me leva para Nova Iorque, é noite e eu estou de bicicleta fugindo. A coisa estava bacana mas eles vieram com tudo para cima, cassetete, gás, bala de borracha mirando na cabeça que é pra cegar mesmo. Muitas vitrines têm tapumes, essa não, é uma loja de sapatos caros. Bolas de gude e uma funda, eles não se importam com vidas negras mas com dinheiro sim, os telespectadores podem ver aqui, aqui e aqui onde a vidraça foi atingida. Mais luz.
A mosca volante vai aos poucos desaparecendo, junto com a nesga de sol. O café esfriou, mas eu termino de tomar mesmo assim.
Me sento ao lado de Angélica, dou um abraço lateral e encosto a cabeça em seu ombro. Ela entende. Logo eu vou para o quarto ligar o home office e preparar meu mindset para virar uma máquina de proatividade no teletrabalho e isso tudo. Mas me deixa ficar mais um pouco aqui, só um pouco. Mais luz.
Aqui tem sol, irmão... tem luz! Mas pra Macaé tá frio demais!!! Demais ao ponto de eu não ter coragem de levantar as palmas das mãos pra absorver a vitamina D. Mas amanhã vou fazer. Pela vitamina e pelo movimento... É quase o mesmo que faço pra rezar o Pai Nosso! Que também me traz luz. Acalma a alma por uns segundos... variando entre o poder da oração e o poder do sol. Juntar os dois deve ser maneiro. Vou fazer. De repente de pijama ainda. Somos nós o movimento! A busca de qualquer coisa boa. De mais luz!
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