Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

4.6.20

Dia 79: por Jairo Loewenstein Silveira

Passo o café meio às pressas para não perder os últimos minutos de sol na janela da sala. Nessa órbita baixa de quase inverno, onze e quinze ele é escondido pelo prédio da frente. Isso me dá uns dez minutos. É suficiente para sintetizar a bendita vitamina D. Disseram que na maioria dos casos graves de Covid-19 as pessoas tinham déficit dessa vitamina, então todo dia venho aqui para a janela e estendo os braços com as palmas das mãos voltadas para cima. Vi num infográfico, é a técnica correta: palmas das mãos voltadas para cima. Eu sei que se der merda não vai adiantar para nada. Simples e fácil demais para ser verdade. Ainda assim faço sempre que tem sol, uma superstição para espantar o mal. Mesmo que não ajude com o corona, me faz bem. Mais luz. Dizem que o Goethe falou isso em seu leito de morte. Sei lá, faz sentido. Mais luz.

Angélica está no sofá dividindo a atenção entre a GloboNews e o celular. O paradoxo do isolamento e da hiperconexão, nosso coquetel diário de ansiedade, todo dia fresquinhas em sua casa notícias sobre o avanço da doença no mundo e do fascismo no Brasil. Na última semana as notícias estão melhores. Reação antifascista aqui e protestos antirracismo nos Estados Unidos. Mais luz. Na GloboNews tem um repórter falando sobre os atos da noite de ontem em Nova Iorque. É preciso que o telespectador saiba que os protestos foram pacíficos ao longo de toda tarde, apenas com o cair da noite é que as coisas foram tomando um rumo violento com saques e depredações, isso não representa o verdadeiro espírito das manifestações, é apenas a ação isolada de alguns black blocs. Eles insistem em categorizar black bloc como um movimento, devem achar que tem CNPJ e carteira de clube do assinante. Eu explico pro repórter que black bloc não são pessoas, é uma tática, o patrimônio da burguesia e do sistema financeiro pagando pela brutalidade policial, ele não escuta e passa a descrever uma vitrine quebrada como se fosse um legista redigindo um laudo de necropsia. É bem gráfico com os ferimentos que levaram a vitrine a óbito, os telespectadores podem ver aqui, aqui e aqui onde a vidraça foi atingida, mas felizmente pelo estado da loja não houve saque.

Mais luz. Eu olho para o sol por um milissegundo, o suficiente para deixar uma mosca volante no centro do meu campo de visão. Eu monto na mosca e ela me leva para Nova Iorque, é noite e eu estou de bicicleta fugindo. A coisa estava bacana mas eles vieram com tudo para cima, cassetete, gás, bala de borracha mirando na cabeça que é pra cegar mesmo. Muitas vitrines têm tapumes, essa não, é uma loja de sapatos caros. Bolas de gude e uma funda, eles não se importam com vidas negras mas com dinheiro sim, os telespectadores podem ver aqui, aqui e aqui onde a vidraça foi atingida. Mais luz.

A mosca volante vai aos poucos desaparecendo, junto com a nesga de sol. O café esfriou, mas eu termino de tomar mesmo assim.

Me sento ao lado de Angélica, dou um abraço lateral e encosto a cabeça em seu ombro. Ela entende. Logo eu vou para o quarto ligar o home office e preparar meu mindset para virar uma máquina de proatividade no teletrabalho e isso tudo. Mas me deixa ficar mais um pouco aqui, só um pouco. Mais luz.

Um comentário:

  1. Aqui tem sol, irmão... tem luz! Mas pra Macaé tá frio demais!!! Demais ao ponto de eu não ter coragem de levantar as palmas das mãos pra absorver a vitamina D. Mas amanhã vou fazer. Pela vitamina e pelo movimento... É quase o mesmo que faço pra rezar o Pai Nosso! Que também me traz luz. Acalma a alma por uns segundos... variando entre o poder da oração e o poder do sol. Juntar os dois deve ser maneiro. Vou fazer. De repente de pijama ainda. Somos nós o movimento! A busca de qualquer coisa boa. De mais luz!

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