Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

5.6.20

Dia 80: por Júlio Ricardo da Rosa

Na pandemia

Através da janela vejo o mar. A cafeteira ronca anunciando que a água esquenta. Uma onda se ergue no fundo e, antes de tombar para virar uma espuma branca, agita no ar sua própria bruma. Estamos em quarentena na praia. Eu, minha esposa e a Frida, nossa cachorrinha. O café fica pronto, coloco leite quente no copo térmico, misturo o café e vou para o quarto nos fundos da casa. A Frida me acompanha. Abro a janela. A escrivaninha, o abajur e o IPAD me contemplam. Nesta sala a paisagem é a parte traseira da casa do vizinho. Ainda não são oito horas. Vou escrever até o final da manhã. Há dias em que a concentração falha e a produção é pequena, mas me apego ao texto e sigo adiante. Pela tarde, trabalho externo em home office e leitura.

Desde a adolescência gosto da praia no inverno. A solidão do lugar me atrai. Às vezes me imaginava como o personagem de “Eu sou a Lenda,” do Richard Matheson, o último homem sobre a terra. Ou o pirata que ia todos os dias até a praia esquadrinhar o mar temendo a chegada  do navio que traria o Cão Negro à bordo em “A Ilha do Tesouro,” do Stevenson. Nunca me imaginei sob perigo real.

A praia está praticamente deserta. Há um pescador que passa todos os dias dirigindo um trator puxando um reboque com uma enorme rede dentro. A Frida late sempre para ele e me pergunto se está irritada com barulho ou assustada com a aparição. A noite chega a cada dia mais cedo e os postes de luzes amareladas da rua dão um colorido irreal às árvores. O mar é um fundo negro que ruge nas noites de vento. A lua raramente aparece.

Tento imaginar o final deste período e o recomeço, mas os enredos me parecem falhos. Sinto falta da natação. O mar não é o ambiente adequado pada o nadador de piscina, principalmente no inverno, e meus verdes anos de nadador temerário já vão longe. Estou acostumado a ir ao cinema duas vezes por semana e o último filme que assisti em uma sala de projeção foi “O Oficial e o Espião,”  em março. Como o cinema vai voltar? Há quem afirme que uma era terminou. Busco razões para contrariar esta sentença. Tenho saudade das livrarias. Comprei livros pela internet mas é sempre uma experiência incompleta. Ouvi dizer que as que estão abertas, são obrigadas a controlar o fluxo de clientes.

Esta tragédia trará um mundo melhor? A dor fará o homem mais solidário. Não creio. Muitas vezes penso que a Humanidade, assim como o monstro de Frankenstein, é uma experiência mal sucedida. Minha esperança são as pessoas que trocam mensagens, telefonam, usam as redes sociais e fazem chamadas de vídeo para as pessoas que lhes são queridas. Estas vão se encontrar mais, expressar seu sentimentos com maior facilidade e ouvir com mais paciência e atenção. Seus mundos serão melhores. A lembrança da saudade e do afastamento obrigatório os tornará mais próximos, e os momentos que dividirem mais preciosos.

Um comentário:

  1. Gostei muito do seu texto. Sou uma apaixonada pelo mar, morei duas décadas mais um ano no Rio. E a atmosfera de solidão descrita me trouxe uma serenidade boa. Fico imaginando como pode ser experimentado um afastamento assim da cidade numa situação de pandemia. Não me resta ideia melhor do que a sua, em boa companhia da esposa e do cão, tendo o mar como personagem cinematográfico. Obrigada!

    ResponderExcluir