Uma pessoa por dia. Um dia de cada vez. Diário da pandemia é uma tentativa de reunir relatos daqueles que estão atravessando os tempos de coronavírus em Porto Alegre.
Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.
6.6.20
Dia 81: por Renata Wolff
Willkommen
1. Em janeiro, antes de estourar tudo, fui a Buenos Aires. Um dos desejos de viagem era assistir a um musical. Estava muito animada para ver Hello, Dolly!, cujo letreiro enorme enxerguei na Corrientes na chegada. Comprei o ingresso no primeiro dia.
2. Hello, Dolly! era ótimo. Mas não um desbunde. Desbunde foi Cabaret, que vi anunciado por acaso. Comprei o ingresso para a mesma noite, de impulso, ao passar em frente ao teatro, bem menor e fora da Corrientes. Bastou o mestre-de-cerimônias aparecer sozinho no palco e começar miudinho: Willkommen, bienvenue, welcome. Ah, meu coração. E, como se não bastasse, lá pelas tantas entra a Sally Bowles para cantar o showstopper e declarar que ama a vida de cabaré. Saí chorando.
3. Cabaret se passa nos últimos meses da Berlim de Weimar antes dos nazistas tomarem conta. A libertinagem decadente é tão exuberante quanto triste. A festa terminava.
4. Hoje é 6 de junho, dia D. Há 76 anos, a grande geração desferia a ofensiva para derrotar o Terceiro Reich, à custa de sangue e vidas (oitenta milhões do lado aliado, e isso contando não só militares como civis mortos inclusive de fome e doenças relacionadas à guerra).
5. O que é que nós, geração da internet, precisávamos fazer para barrar os fascistinhas reality show aqui no Brasil em 2018? Simplesmente votar certo. Sem sacrificar lhufas. Mas não. Preferimos eleger o terraplanismo, o dízimo, as arminhas de mão, os bichos-papões de whatsapp e facebook, e as camisas da Seleção manufaturadas a centavos na Ásia. E comemoramos com fogos de artifício.
6. Ainda em Buenos Aires, uma noite saí para jantar milanesa com batata frita. Uma menina passou nas mesas pedindo dinheiro. Eu disse que dinheiro não tinha, mas perguntei se queria dividir o prato comigo. Comecei a servir fritas para ela. A menina disse bueno, meio constrangida, e cortou um pedaço da carne. Eu disse: pega mais. Ela pegou outro pouco. Insisti de novo. E ela: está bem, mas depois chega, porque a senhora precisa comer.
7. Eu menti. Tinha dinheiro. Enquanto neguei a ela uma nota de pesos argentinos, a menina estava preocupada que eu tivesse comida suficiente.
8. Em março, nos dias anteriores ao isolamento, recebemos no tribunal um email de um advogado. Ele queria urgente que liberássemos um valor de quase um milhão que havia sido bloqueado em sua conta. O motivo? Para investir logo na bolsa de valores, que estava despencando com as notícias do covid-19. Ele não podia perder a grande oportunidade de fazer aportes, explicava o email.
9. A menina do restaurante (pior, nem perguntei o nome) deixou de pegar mais carne por se solidarizar comigo, uma turista. O advogado do milhão de reais na conta queria aproveitar a quebra, e portanto a miséria alheia, para lucrar com capital especulativo. Mais: descreveu isso abertamente.
10. Sobreveio a quarentena. Desde lá, trabalho de casa. Saio de duas em duas semanas para fazer supermercado. Meus familiares estão nas suas casas, felizmente saudáveis. Nos falamos por vídeo e texto. Com xs amigxs a mesma coisa. Não encosto em outro ser humano há três meses. E tudo isso são luxos. Luxos.
11. Mil mortes por dia. Não tem teste, não tem leito, não tem nem enterro digno. Artistas e autônomxs sem fonte de renda. Extermínio de pessoas negras, pobres, trans, índigenas. O presidente miliciano a cavalo. E as carreatas exigindo, à base de buzina, a chance de se contaminar. Meninxs, eu vi: as carreatas.
12. No prédio onde moro, estavam reparando a fachada durante o verão. Uma tarde, sol inclemente e temperatura batendo nos quarenta, o andaime passou diante da minha janela. Ofereci água. O senhor que trabalhava disse que os outros apartamentos só fecham o vidro e as cortinas. O prédio tem 112 apartamentos. Cento e doze. O senhor era negro.
13. Isso não torna a minha oferta mais do que o dever ridiculamente mínimo de um ser humano para com outro. Não sou nenhuma salvadora de meia pataca. A história é dele (muito embora, de novo, eu não tenha perguntado o nome). Eu sou outra cara do lado de dentro da janela. E do lado de fora de um presídio. Sou parte do problema. Nego dinheiro a uma menina pobre mas me comovo com o drama fictício no palco. Faço postagem woke no instagram como se fosse ativismo suficiente. E reconhecer isso também não é nenhum ato de coragem ou mérito, é simplesmente afirmar um fato.
14. Neste mesmo prédio e na mesma época, uma vizinha não sossegou até que, contrariando as normas sobre focos de transmissão da dengue, conseguiu autorização da síndica para deixar uma bacia de água no térreo, permanentemente. Para os cachorros. Os cachorros não podem esperar o meio minuto de uma subida de elevador para saciar a sede depois do passeio, entende? Os cachorros, pobrezinhos, não merecem ficar sem refresco à mão. Onde já se viu?
15. A mesma vizinha conversa com sua cadela, em público, como se gente. Imagino que seja uma relação parecida com a da patroa no Recife que mandou a empregada passear com a cadela (claro, com todos os cuidados) enquanto deixou o filho de cinco anos da empregada sozinho no elevador e apertou o botão para subir. O menino caiu e morreu. O menino chorava pela mãe e estava perdido no prédio de luxo. O menino era negro.
16. Esse nome eu sei. Miguel Otávio Santana da Silva. Queria ser jogador de futebol.
17. Existe tanta diferença entre os meus vizinhos e a patroa do Recife? E entre mim e o advogado milionário?
18. Durante esta quarentena vi passar, até agora, o meu aniversário de quarenta anos, o dia das mães e o aniversário do meu pai, que sempre quis ver ao vivo as praias da Normandia onde aconteceu o desembarque. Também passou o aniversário da minha formatura em Direito. (Me formei em uma universidade pública em 2003. Das setenta pessoas formandas, nenhuma era negra.) Mas a verdade é que estou aconchegada. Me entretenho fácil sozinha. (Leio poesia e os textos de aula. Assisti ao The Office inteiro. E canto às paredes as músicas do Cabaret. What good is sitting alone in your room? Come hear the music play. No use permitting some prophet of doom to wipe every smile away. Life is a cabaret, old chum. Come to the cabaret.) É a vantagem de ser introvertida. Mais um privilégio: privilégio por todos os lados. Assisto em segurança enquanto uma praga importada por ricos em seus passeios ao estrangeiro dizima periferias. Sinto uma culpa amarga, o mesmo amargor da vergonha que senti da menina no restaurante. E bem feito pra mim.
19. Tento produzir a dissertação do mestrado mas cada vez mais me convenço de que não importa. Nada importa. O que eu escrever ou deixar de escrever não muda bosta nenhuma. Talvez esta civilização inteira seja uma experiência miserável que mereça implodir, não fosse até mesmo o método de implosão viciado por uma desigualdade revoltante.
20. Tenho ondas diárias de saudade, tristeza, raiva, angústia e ansiedade. Mas também são luxos. Na pior das hipóteses são desconfortos. E o meu desconforto que vá à merda.
21. Sei que isto não passa de uma coleção desordenada de coisas avulsas. É como eu percebo o mundo por estes dias. Tudo entrecortado e suspenso. O nonsense da realidade devora qualquer tentativa de ordenação, mesmo para fins de criação ficcional. Agora até parecem um delírio distante os governos de esquerda dos anos 2000, quando dançávamos sem saber que a festa era de despedida. Leave your troubles outside. We have no troubles here. Wir sagen willkommen, bienvenue, welcome - im cabaret, au cabaret, to cabaret.
22. No final apoteótico, a Sally Bowles, mesmo despedaçada no íntimo, canta: Start by admitting from cradle to tomb isn’t that long a stay. Life is a cabaret, old chum. Only a cabaret, old chum. And I love a cabaret!
23. Mas a Sally Bowles, assim como eu, era branca.
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Excelente. Texto maravilhoso. E o Di Diário da Pandemia é genial.
ResponderExcluirTexto excelente e o Diário da Pandemia é genial.
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