Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

8.6.20

Dia 83: por Thiago Souza de Souza

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Sento para escrever este texto e da janela aberta, a janela que por sorte me deixa ver o rio e por onde eu tenho respirado durante esses dias, me chegam os sons das manifestações antirracistas e antifascistas que ocupam as ruas do Centro Histórico de Porto Alegre. O mundo outra vez em ebulição, mas agora com o componente inédito para nós que é estar em ebulição no meio de uma pandemia: as primeiras bolhazinhas da fervura começaram com a postura anticientífica de países governados pela extrema-direita, o assobio da água convulsionando chegou com a morte de George Floyd, homem negro assassinado covardemente ao ter seu pescoço pressionado pela brutalidade e pelo racismo da polícia dos Estados Unidos. No nosso pátio, atulhado de militares de pijama que já começam a colocar em prática o habitual expediente de esconder cadáveres, turma sempre saudosa da ditadura militar que jamais punimos, João Pedro, adolescente negro de 14 anos, foi alvejado dentro da própria casa no Rio de Janeiro pela polícia que mais mata no mundo. E ainda um caso tão triste quanto simbólico do que é o racismo no Brasil: Miguel, criança negra e filho de empregada doméstica negra, morreu ao cair de uma altura de 35 metros depois que a patroa loira da mãe, de sobrenome Corte Real e casada com um prefeito, apertou o botão do nono andar do elevador e deixou que a criança subisse sozinha. O menino procurava pela mãe, que, no meio de uma pandemia, teve de deixar o filho aos “cuidados” da patroa para levar o cachorro dos patrões ao passeio à sombra de um projeto arquitetônico cafona e capricho de especulação imobiliária no Recife. Corte Real pagou fiança de R$ 20.000,00 e foi liberada. Enquanto eu fechava este texto, li a notícia de que ela está cadastrada para receber os R$ 600,00 do auxílio-emergencial do governo para pessoas sem renda durante a pandemia.

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Um diário é o espaço em que registramos o que lemos, o que ouvimos, o que assistimos, o que pensamos, o que sentimos, todas as experiências que nos atravessam. Mas como contar apenas que comprei um Kindle lá nos primeiros dias?, como contar apenas que assinei a Mubi para fugir dos filmes recomendados por algoritmos?, como contar apenas que me atrapalhei no site da loja de orgânicos e acabei com a casa lotada de cebolas? Tudo parece tão pequeno e fora de foco perto das angústias que estamos experimentando. A experiência central do meu isolamento, que hoje chegou ao 85º dia, é o constante sentimento devastador de tristeza e frustração ao acompanhar a ação de um Estado que mata os mais pobres e vulneráveis e, na figura do presidente da República — um sujeito tosco, tacanho e fascinado pela morte —, autoriza e incentiva os mais abjetos ataques à saúde pública, à democracia, ao livre exercício do jornalismo, ao meio-ambiente e aos grupos sociais historicamente oprimidos. No atual estágio dessa escalada autoritária e neofascista, não vejo a menor possibilidade – muito menos a necessidade – de pensar em um retorno à vida “normal” nem de investir esforços para tecer reflexões a respeito do que a humanidade pode ou não aprender com a pandemia e a quarentena. Antes de qualquer outra coisa, o que é urgente e se impõe é a tomada de consciência do momento histórico e o que ele exige de nós: que nos posicionemos antes que seja tarde demais e dessa toada de marchas com símbolos nazistas, impulsionadas por um governo que não se constrange em também ostentar esses símbolos, ressurja um período tão sombrio que seja capaz de nos engolir a todos. Meu palpite é que estamos quase lá.

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No meio de tudo isso, também leio meus livros e assisto a filmes, e faço esta nota para dizer que construir uma bolha, que serve ainda de escudo, para se defender das ansiedades desses dias é uma legítima estratégia de sobrevivência. Li em sequência três livros de Thomas Bernhard: Extinção, O náufrago e O imitador de vozes. Esse é um autor que recomendo para tempos como esses, porque seus livros podem iluminar possibilidades de pensar com honestidade sobre nossas origens e de criticá-las. Por meio de um texto claustrofóbico e labiríntico, Bernhard usa o exagero para expor a crueza da nossa natureza complexa e contraditória, tanto no plano individual quanto no coletivo. N’O náufrago, um dos meus livros favoritos de toda a vida, ele narra uma história incômoda sobre o potencial da arte, que às vezes nos salva mas também pode nos aniquilar ou nos levar ao desespero. A voz de Bernhard pode falar de coisas feias, mas de uma forma que nos faz rir. Ainda vi em sequência três filmes em que Casey Affleck é o protagonista (e ele parece fazer sempre o mesmo papel, o de um homem profundamente afetado por um trauma, mas isso não é uma crítica), o que eu poderia chamar de Trilogia da introspecção: Manchester by the sea, Light of my life e A ghost story. Vou me ater a este último, porque o assisti lá no início da quarentena e ele ressoa em mim até hoje e porque este 8 de junho já vai longe. É um filme quase mudo, feito de silêncios, de cenas quase estáticas, de uma necessidade de ficar meio obsessivo com uma história até que a gente consiga entendê-la ou absorver dela o mínimo necessário para seguir em frente. Quase como agora, aqui.

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