Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

9.6.20

Dia 84: por Rafael Gloria

Sempre demorei mais a pegar no sono. Invejo muito até hoje quem deita e simplesmente dorme. Eu não, por muito tempo a ideia de dormir rapidamente me causava uma ansiedade tremenda. Nem era porque tinha muita coisa para ficar remoendo, nem era porque ficava lembrando de situações vergonhosas. Era porque me sentia obrigado: ter de deitar e dormir me irritava profundamente. Mas com o tempo fui inventando armadilhas para tentar envolver o sono, para que me alcançasse mais facilmente, para que me vencesse de um modo mais rápido. Sabe? Eu tinha que aprender a ser a vítima perfeita para o crime de dormir à noite, em paz. 

Então, não sei como começou, mas lá estava eu deitado quando uma lembrança do dia surgia, como uma cena de filme, e algo fazia ela se embaralhar com outras lembranças antigas. Em algum momento dessa esculhambação eu encontrava repouso. Tenho a sensação de que o sono é costurado por uma mescla de lembranças atuais transfiguradas que servem como uma espécie de respostas a pensamentos antigos. 

Uma colcha para se embalar. 

O problema de quem trabalha ouvindo e entrevistando muita gente é também se misturar com a lembrança dos outros. A minha profissão me obriga a fazer isso: a escutar muitas pessoas para uma matéria, por exemplo. Absorver um pouco da história delas. Gravar tudo. Baixar para o computador e então ouvir tudo de novo para transcrever exatamente o que ela quis dizer. Eu sou um pouco perfeccionista e por isso transcrevo todas as entrevistas que eu faço. Nesses anos de jornalismo já foram muitas palavras de muitas pessoas circulando na minha cabeça. Cada voz é única e seus diferentes tons pintam diferentes retratos. Por isso, eu tenho certeza que eu já sonhei o sonho de outras pessoas. Eu sei, é algo complicado de imaginar. Mas com tantas vozes circulando na minha mente, com certeza algumas delas já se mesclaram com algumas das minhas lembranças e me fizeram dormir em paz em alguns dias. 

Seria possível mudar a personalidade ao absorver tantas lembranças alheias? Por enquanto só as uso para dormir. Ainda não desenvolvemos a propriedade de se comunicar pelos sonhos. Porém, sabemos que somos constituídos de momentos que de algum modo ficaram conosco. E o atual momento com que somos obrigados a lidar nos impulsiona a sonhar com o passado de um novo jeito.

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