Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

10.6.20

Dia 85: por Ana Carolina Ferrão

Dia-não-sei-qual-do-isolamento, mais conhecido como o-pior-dia-da-minha-vida. Os corpos não são nada. Eu descobri isso quando tu foi internada no hospital e os médicos começaram a revirar o teu corpo, tentando descobrir o que estava corroendo os teus ossos. Eles descobriram. E a gente achou que a quimioterapia de ponta ia te levar pra casa em algumas semanas. A gente ficou até feliz quando tu foi pro quarto privativo: TV e ar-condicionado. Hoje isso parece tão bobo, que a gente tenha ficado feliz sem nem saber que aquele quarto seria o último lugar que tu estaria com vida. As semanas cresceram nutridas pelas bolsas de sangue que tu fazia dia após dia. Elas viraram meses. E quis o destino que o teu câncer avançasse bem no meio de uma pandemia. As visitas foram cortadas e eu só te via por chamada de vídeo. Até o dia em que uma infecção  resolveu achar o caminho dos teus pulmões. Não era covid-19, mas foi fatal. Foi tão difícil assistir a tua respiração sofrida, lutando pra existir. Eles então liberaram as visitas, eu não pude nem ficar contente porque iria te ver. Liberaram as visitas porque tu estava morrendo. Nesse ponto tu já não reconhecia muitas pessoas por causa da medicação. Eu não queria chorar ao pé da tua cama, mas o meu peito começou a embaraçar, junto com a minha vista. Eu encharquei o tecido que cobria o nariz e a boca, o calor embaçou os óculos. Foi por essa lente pouco nítida que eu vi teus olhos abrindo: tu é o amor da minha vida. Eu engoli o peso que subiu pela garganta: e tu da minha. Sim, o meu rosto tu reconheceu, mesmo vendo só uma parte dele. Contra todas as rezas e clamores que eu poderia fazer, a tua partida aconteceu no dia seguinte. A ameaça do novo vírus parecia tão pequena dentro dessa tragédia que estava acometendo nossas vidas. Eu te perdi durante a quarentena, não pude te abraçar e tu não pode ver meu rosto uma última vez. O teu velório, mesmo sendo a professora mais querida na escola que tu trabalhou quase a vida toda, estava praticamente vazio. A nosso adeus foi através de uma máscara, de um vidro tão pequeno no caixão fechado. Eu queria que tudo isso fosse apenas ficção, e às vezes eu até acredito que vou te ver de novo porque é tão inconcebível que tu não exista. Como pode ser realidade que nunca mais tu vai estar aqui? Eu sequer me despedi direito. O coronavírus roubou o último beijo que eu queria tanto ter te dado. Mas tudo bem, dinda, eu vou guardar ele pra ti.

3 comentários:

  1. Bela homenagem pra tua dinda. Força!

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  2. Sinto muito por tua perda. Tua dinda devia amar muito essa afilhada.

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  3. Compartilho contigo minhas lágrimas abundantes que surgiram da leitura de teu texto, tão tocante. Que experiência profunda a tua. É, a vida tem disso, não poupa ninguém. A escrita pode ser, em alguma medida, redentora. O abraço amigo quando pudermos tê-lo de novo será balsâmico. Fique bem.

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