Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

12.6.20

Dia 87: por Luciana Guirland

Meu isolamento voluntário começou no dia 11 de março. Lembro de ter faltado à última aula de um interessantíssimo seminário na minha universidade, que por sua vez suspendeu as aulas cinco dias depois. Moro sozinha e a solidão, nessa semana, começou a incomodar. As consultas com a psicóloga passaram a ser por Skype. Sempre foram semanais, mas à medida que a leitura das notícias sobre a pandemia ao redor do mundo se intensificou, as consultas tornaram-se mais frequentes. O medo e a ansiedade, rapidamente, passaram a ocupar as zonas do corpo que haviam se habituado a uma certa normalidade.

No final do mês, começaram os pesadelos com a morte. Não com a minha própria ou de alguém querido. Apenas a Morte, como força devoradora, espécie de buraco negro, a entidade em si. Sem rosto, sem esqueleto, sem foice, sem figura de desenho animado. Apenas essa força que me agitava na cama e me fazia acordar chorando no meio da madrugada.

Me afastei de meus melhores amigos e família nesta fase. A relação com meu namorado – nos permitíamos encontros aos finais de semana, afinal, ambos nos cuidávamos, cada um em sua casa – por pouco não terminou. A busca era por prazer e amor, mas surgiam conflitos indecifráveis e incontornáveis.

Sair à rua era perigoso. Além da onipresença do vírus, as calçadas eram habitadas por poucos. Raros moradores de apartamento, usando máscaras e atravessando a rua quando eu passava. Muitos moradores de rua. Sem máscaras. Sem nada. Desesperados. Eu cumpria as instruções dos profissionais de saúde à risca: saía apenas quando a comida acabava. Não lembro se já era abril quando estive próxima de uma crise de pânico por claustrofobia. Lembro de não suportar olhar para os mesmos cômodos e objetos, da taquicardia que me acometeu, lembro de sair à frente do prédio para ver a rua, as árvores, lembro do pavor que isso inspirou, lembro de voltar correndo para o apartamento e não ter outra saída a não ser controlar a respiração – “sente o diafragma, inspira, solta o ar devagar, inspira, solta de novo”.

Aconteceu no dia sete de abril. Eu havia lido, pela manhã, que nos Estados Unidos estavam morrendo cerca de duas mil pessoas por dia de Covid-19. Em Nova York, elas estavam sendo enterradas por presidiários em valas comuns no Bronx, mais especificamente em Hart Island – que, segundo a notícia, vem sendo usada há mais de cem anos para enterrar indigentes. Duas mil pessoas sem direito a um funeral. Por dia. Heart Island? Broken Heart Island? Para o meu coração, foi um tanto demais. O empurrãozinho para além do limite. Sabia que esse presente estadunidense insólito era o futuro do Brasil. Que a onda chegaria aqui. Morreríamos assim. Veríamos nossos anciãos amados, primeiro, morrendo, antes de seu tempo. Antes que pudéssemos dizer que os amávamos, pois seria rápido, muito rápido. Além disso, aprendi com meu pai que não é a morte iminente que nos faz pegar um telefone e dizer “eu te amo”. Nesse sete de abril, fui dormir cedo, com a ajuda de alguns calmantes. Acordei no meio da noite, sem saber a hora. Estava com fome. Fiz um sanduíche, e decidi, em meio ao delírio que os fármacos podem provocar, recheá-lo com mais remédios para dormir. Ali mesmo, entre o requeijão, o presunto e o pão. Todos os remédios para dormir da casa. Sabia bem o que queria. Não pedi ajuda. Não escrevi bilhete. Tratei apenas de comer o sanduíche com seu gosto de giz. Fui pra cama. Não lembro se dormi. Lembro da náusea e do vômito. Vômito involuntário.

Minha relação com a pandemia mudou a partir do dia seguinte. Fui aprendendo. Talvez não morra. Talvez minha mãe e minha tia, 82 e 91 anos, respectivamente, não morram. Talvez eu até mesmo possa fazer algo que impeça ou dificulte isso. Talvez eu não enlouqueça. Faço o que está ao meu alcance. Não me cobro. Não faço dieta. Talvez. A única certeza é a de que lá fora, nas ruas, faz um outono lindo como há muito não fazia. Sem chuvas, frio, ensolarado e com o céu de um azul altíssimo.

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