Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

13.6.20

Dia 88: por Mélany Dias

“Poesia” é o nome do despertador que programei pra tocar às dez da manhã. Esse marcador eu comecei a usar no ano passado, quando tinha a tarefa de produzir um poema por semana a ser entregue nas sextas-feiras. A palavra poesia em letras maiúsculas e seguida de cinco pontos de exclamação me servia pra lembrar que era tempo de escrever. Na maioria das vezes, o poema já existia em mim como uma inscrição de ideias e rimas antes do alarme tocar. Enigma do tempo do inconsciente e das coisas que começam a ser escritas antes do registro no papel. Agora todos os dias desperto com a palavra que me lembra criação poética e desde que a quarentena começou eu pensei que era tempo de escrever um romance. De umas duzentas páginas que ainda não consegui começar. Acordo com a poesia enquanto palavra que arrasto pro lado e suspendo por cinco minutos ou talvez meia hora. Depois levanto pensando em ligar pra minha avó que não vejo há dois meses e vinte e dois dias. A datar do início do isolamento ela pergunta quando isso vai acabar e eu respondo que daqui a pouco. Em breve. Saudade de abraçar vocês, ela me diz. Sim, também sinto, daqui a pouco, em breve. Deus te abençoe. Amém. Eu sempre desligo depois do amém e com a angústia de não saber quanto tempo cabe no daqui a pouco. Me parece que é tempo de refazer imediatamente os tempos verbais. Ontem mesmo eu me vi envelhecer vinte e nove anos quando sequei o chão do banheiro depois do banho, e lembrei da mãe da melhor amiga de uma amiga que não encontro há muito tempo. Aos cinquenta e três anos, a mãe da melhor amiga dessa amiga me marcou pelo costume desnecessário e improdutivo de secar o chão depois de tomar banho. Já faz dezoito dias que ao terminar o banho eu repito o exercício de enxugar o chão. Sinto falta de caminhar pelas ruas da cidade baixa, beber dois litros de cerveja por quinze reais e fumar o cigarro mais barato da tabacaria da Lima e Silva, 532. Se alguém me parasse naquela esquina com a intenção de alertar sobre o risco de três meses depois eu me encontrar secando o chão do banheiro, provavelmente eu ia dar risada pelo cômico de uma profecia descabida. Acontece que coube na minha rotina não só isso, mas também a indecência de enganar minha vó ao alongar o tempo do dentro em breve. Tenho tido tempo de me perder no tempo, de confundir os passados e dilatar o presente. É tanto tempo que falta tempo, de tão largo que ficou estreito. Ainda não tive tempo de aprender nenhum novo idioma, não pratiquei nenhuma aula de ioga e também não comprei nada pela internet, mas depois de ler um texto da Eliane Brum sobre a cidade que mata o futuro, tive tempo de ficar durante duas horas percorrendo Altamira pelo google maps. Me olhei no espelho como quem olha de fora pra dentro sem coragem de entrar. Eu tô cansada e indignada de não conseguir. Essa frase foi o ponto alto da minha semana. Uma frase incompleta e lacunar porque eu não sei como preencher esse sintagma. Eu tô indignada de não conseguir me posicionar frente a um governo que se promove através de conflitos. De não conseguir narrar contornos pro caos. De não conseguir me deixar levar pela poesia que desperta às dez da manhã. De não conseguir parar de secar o chão do banheiro. Eu tô cansada e indignada de não conseguir fazer alguma coisa que faça sentido. De não conseguir articular rede de vínculos e afetos. De não conseguir pensar sobre o que vem depois do daqui a pouco. De não conseguir pensar no depois. De não conseguir escrever sobre o agora. De não conseguir. Mas talvez amanhã às dez horas. Daqui a pouco, em breve. 

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