Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

14.6.20

Dia 89: por Gustavo Machado

Vão se acumulando os dias e eu os ponho lado a lado, como se numa lista que pretendo fazer mas nunca materializo. São muito parecidos, os dias. Talvez iguais. Não têm mais números. São asteriscos.

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Pouca gente deve ter testemunhado; era tarde e a maior parte da vida se recolhera aos interiores dos apartamentos. Mas eu notei o véu muito leve de uma fina neblina cobrindo a cidade. Turvava os contornos, roubava a nitidez das formas, confundia as perspectivas e as distâncias. Quem eventualmente olhasse à janela àquela hora enxergaria em duração indefinida o que eu vejo quando vou espiar a rua e esqueço de levar comigo os óculos. Notam como é estranho?, eu penso (e quase digo). Esta redinha de água miúda, suspensa na madrugada de poucos ventos, por uns instantes me nivela à melhor visão que podem ter os outros. A noite é uma senhora gentil. Sempre foi boa comigo.

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Estão falando no rádio. Um homem branco asfixiou até a morte um homem negro, é o que entendo dos pedaços de frases que vêm de algum lugar da casa. Foi em algum lugar da América. América do Norte, como se costuma chamar os Estados Unidos. Por aqui nós também já matamos e mutilamos e mesmo desossamos muitos negros, aplicando-lhes variados feitios de flagelo, nem sempre usando os joelhos contra os pescoços. Não só no passado. Fazemos isto todos os dias, desde quase sempre, somos experientes na área. É uma grande coincidência que eu esteja lendo, na hora, aquele terceiro volume da trilogia histórica de Laurentino Gomes. E relendo trechos dos dois primeiros livros, leio, rabisco, releio, rabisco de novo. Num destes livros já bordados de grafite, redescubro que em 1812 metade dos trinta maiores comerciantes do Rio de Janeiro era composta por traficantes de escravos. Pouco depois, entre 1830 e 1839, entraram no Brasil mais de quatrocentos mil negros africanos. Foi um erro, porque isto vulgarizou a mercadoria, aviltando o seu valor. Não se contavam os que morriam na travessia transcontinental. Nem os que expiavam logo nas primeiras horas do desembarque. É difícil trabalhar a fragilidade da carga viva. E os tempos estavam mudando. Os preços, passando de setenta e cinco para trinta e cinco libras inglesas, cada unidade. Esta queda no preço do negro vivo provocou grande abalo na economia.

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É lento e custoso o desencaixotar das coisas. Em algum momento de 2013, meu pai separou para mim um volume do breve (porém intenso) “O Mandarim”, uma espécie de “lado B” do português Eça de Queiroz. Por algum motivo, ele nunca me entregou presente e só há pouco encontrei o livro, com dedicatória e tudo. Parece que o afeto contido na tinta azul de meu pai e a generosidade exagerada das suas considerações vêm de mais longe do que o século XIX, quando Queiroz deitou esta narrativa ligeira, cantada em tom de fábula. “Abati-me sobre uma cadeira; e, com a face entre as mãos, chorei abundantemente”, diz Teodoro, como se num eco ao contrário.

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