Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

15.6.20

Dia 90: por Yannikson

Troquei a janela do quarto e comprei a cortina errada: tenho adormecido e acordado com uma claridade em formato de quadro na parede. De noite a luz dos postes fingem ser gigantes abajures, de dia os raios tentam fazer a manhã parecer um comercial de margarina. A vista até que é bonita: o rio Jacuí se estendendo no horizonte, revezando a aparição com as copas das árvores do pátio dos vizinhos e perdendo seu destaque somente para as paredes da penitenciária que, de longe, encaram as alturas do meu quarto. Distintos confinamentos.

A fadiga e a vontade de aproveitar o dia ao máximo se misturam na frigideira junto com o café da manhã, me avisando que tenho mais coisas pra esquecer do que pra lembrar de fazer. Num estalo, pensamentos perdidos visitam conflitos antigos, buscando respostas para brigas com pessoas que hoje não valeriam nenhuma discussão ou aproximação. Um pequeno redemoinho vai puxando outras lembranças avulsas, compactadas entre decepções, casos e acasos, coisas que eu devia ter dito mas não disse e coisas que nunca deveria ter feito mas fiz. Nessa hora percebo que há vários pensamentos que a gente acha que se livrou mas que, na verdade, continuam ali. Adormecidos na ressaca do tempo.

Pensando em tocar as pontas soltas me lembro que há muita ideia nova sendo costurada nestes últimos meses de exclusividade de vida. Trato então de emendá-las como se fossem fios de ouro, na tentativa de valorizar a preciosidade que carregamos no baú que rege as batidas do nosso interior. Na rua está o sol, guiando o dia e me convidando pra intermináveis xícaras de café. Sozinhos, ele lá e eu aqui, e ao mesmo tempo muito bem acompanhados, regidos por distâncias que, no final das contas, são justamente as que permitem que a gente se aproxime cada dia mais. No girassol que capta a luminosidade do dia os redemoinhos vão se desfazendo, se dissolvendo na respiração lenta que só quer que tudo isso se acalme de uma vez. E assim a melancolia e a esperança voltam a se abraçar ao longo de todo meu dia, disputando decisões que seriam ridiculamente fáceis de serem tomadas se houvesse uma rotina apressada guiando o meu tempo-espaço. Me canso de tanto, de tudo e de todes. Só não me canso de sentir saudade dos abraços que vão me irradiar quando tudo isso acabar.

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