Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

16.6.20

Dia 91: por Marcelo Frizon

Quarenta anos hoje

1. “Vomitar esse tédio sobre a cidade. / Quarenta anos e nenhum problema / resolvido, sequer colocado.” Esses versos de Drummond em “A Flor e a Náusea” parecem tão sem sentido pra mim. Sinto-me um herege dizendo isso, mas estou fazendo 40 anos hoje e estou cheio de problemas, a maioria deles resolvidos, mas uns tantos apenas colocados. Não que eu não entenda o que ele disse aí, mas aprendi a não julgar os problemas dos outros. Não tenho e sobretudo não posso usar minha régua para medir problemas que não são meus.

2. Qualquer um que está fazendo aniversário no isolamento deve estar irritado com a situação. Eu imaginava meu aniversário bem diferente. 40 anos é uma idade redonda daquelas em que o sujeito precisa fazer um balanço do que viveu e do que ainda quer e espera viver. Mas a pandemia parece impor a dúvida se haverá outros aniversários a comemorar.

3. Às vezes acho que exagero ao pensar assim. No fundo, não me sinto no direito de reclamar de minha situação. Nunca imaginei que a minha classe seria tão privilegiada como agora. Sou professor em três escolas particulares de Porto Alegre. Trabalho com Redação, Literatura e Língua Portuguesa. Gosto do meu trabalho, gosto dos meus alunos, não parei de trabalhar, não estou sem receber nem tive corte em meus rendimentos. As escolas todas se organizaram com ferramentas digitais variadas para manter o estudo à distância. Continuo interagindo com os alunos, embora de forma diferente.

4. A situação brasileira é pior do que a de outros países porque, além do vírus, precisamos lidar com políticos incompetentes, sobretudo no governo federal, que mais atrapalham do que ajudam. Talvez isso gere mais náusea. E aí voltamos aos alunos.

5. Eles me perguntam quando voltaremos. Já respondi a essa pergunta muitas vezes em todas as turmas. Não sou membro da direção das escolas. Não sou político nem funcionário público da administração municipal, estadual ou federal. Não tenho como responder. Tudo que posso dizer, para tentar aplacar a ansiedade desses adolescentes ansiosos (o que talvez seja um adjetivo redundante), é que não temos previsão e que, como cidadão, acho que esse retorno está cada vez mais distante. A ideia inicial era retornar após a Páscoa. Depois era maio. Então junho. Agora, julho, mas logo será agosto, setembro, talvez outubro. Aí os alunos querem saber como ficarão os projetos que eles costumam desenvolver ao longo do ano. Alguns estudantes do 1º ano do Ensino Médio se irritam, querem gravar o curta-metragem baseado em obra literária, trabalho da série naquele ano. Digo que, provavelmente, não será possível. Como impor que eles se reúnam para fazer um trabalho em grupo? Até a Globo cancelou suas novelas neste ano. Hollywood também está parada. Eles protestam, afinal Globo e Hollywood envolvem centenas de pessoas numa produção, eles só têm cinco ou seis pessoas gravando com um celular. Argumento que eles precisam ficar distantes, não podem se tocar. Eles arrefecem. Negocio fazer a atividade no ano que vem, apesar de não ser um projeto do 2º ano. Eles dizem que alguns estarão viajando, fazendo intercâmbio. Então eu digo que não quero ser o portador de más notícias, mas que é bem provável que os planos de intercâmbio deles precisem ser adiados. Eles não tinham pensado nisso. Se incomodam com minha colocação. Eu argumento que o Trump proibiu a entrada de brasileiros no EUA. A Europa está fazendo o mesmo. Não há previsão para isso ser alterado. O Rio Grande do Sul está voltando atrás na flexibilização do comércio e de outras atividades. Então alguém diz que é um retrocesso voltar atrás e defende a cloroquina. Eu observo que a OMS não recomenda o uso da medicação para o tratamento da Covid-19. O aluno insiste dizendo que há estudos na China que provam que a cloroquina é eficaz. Eu respondo que queria muito que ela fosse eficaz, mas que, até agora, tudo indica que não é assim. Então uma conversa boba, baseada no que está sendo veiculado pelos mais respeitados veículos de imprensa do país, se torna uma discussão política. Eu corto a conversa meio irritado. Fico me perguntando em que momento aquilo que é fato se tornou objeto de divergência política. Não posso dizer que não há provas de que a cloroquina não é eficaz contra o vírus, mesmo baseado naquilo que diz a OMS e a maioria dos infectologistas, porque acabo taxado de comunista. A que ponto chegamos… O aluno argumenta que seu pai, médico, vai me enviar relatórios que provam a eficiência do remédio. Eu ignoro. Outro diz que recebeu um WhatsApp dizendo que a OMS é uma entidade de esquerda vinculada a partidos políticos espalhados pelo mundo. Preciso ignorar se pretendo continuar pagando minhas contas.

6. O que fazer? Porque quando um professor chega a esse ponto, algo precisa ser feito. Já duvidam da imprensa e controlam tudo o que o professor diz para ter certeza de que ele não está tentando formá-los para a revolução comunista, como se o professor fosse um espião infiltrado a serviço do PT ou do PSOL. Daqui a pouco, vão começar a duvidar de que Machado de Assis era negro, mesmo que o professor mostre fotos. Vão começar a duvidar de que “Marcelo” cumpre função sintática de sujeito numa frase como “Marcelo está cansado.” Não importa o que os gramáticos dizem, não importa o que o professor explica. O grupo de WhatsApp é que tem a informação correta.

7. Discuto “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, que eles leram por indicação minha. Quando digo que fica claro que o autor, ao escrever o livro, tinha em mente os regimes totalitários das décadas de 1930 e 1940, tenho medo do que eles podem questionar. Ficam quietos. Avanço e uso expressamente os termos “fascismo” e “nazismo”. Continuam quietos. Estarão ouvindo? Então observo que o autor declarou, em 2010, que o inimigo que ele quis atacar com o livro era a televisão. Em sua visão, a televisão estava tomando um tempo que antes era dedicado à leitura. E aí parece que um alívio percorre o sinal da internet da minha casa até o computador de cada aluno, como se essa justificativa fizesse mais sentido para eles do que uma denúncia do cerceamento da liberdade por um governo opressor.

8. Neste Bloomsday, sinto-me como Leopold Bloom: ora fraco, covarde, ora heroico, corajoso, quase maluco e invencível. Parece uma sina por ter nascido nesse dia 16 de junho. Mas não é, porque essa já não é uma sensação exclusiva, nem é algo que incomoda apenas professores de língua e literatura.

9. Um colega gosta de contar uma história que experienciou num Uber. O motorista pediu a ele que fechasse seu vidro, porque havia parado ao lado do automóvel um caminhão transportando cilindros de hidrogênio. Para quem não sabe, o hidrogênio se dissipa no contato com o ar. Meu colega, professor de Química, estranha o pedido e pergunta por que deveria fazer aquilo. O motorista explica que aqueles cilindros podem explodir. Meu colega pergunta quem lhe disse isso, e o motorista responde “os guri”. Realmente chegamos ao ponto em que “os guri” viraram referência intelectual.

10. Lembro de um professor das antigas dando o recado. Na época, ele dava aulas na PUCRS e num tradicional cursinho pré-vestibular, mas também já havia dado aulas na UFRGS. Ele estava numa dessas turmas com 300 alunos querendo entrar numa universidade pública. Nesse tipo de aula, os estudantes costumam encaminhar ao professor bilhetes com dúvidas ou recados impróprios. Geralmente, o professor não tem como identificar quem é o autor do bilhete, porque ele vem através da multidão. Então ele lê o bilhete engraçadinho, que perguntava qual seria seu epitáfio. Ele responde “Lutou contra a ignorância, mas foi vencido. Eram muitos.” Talvez este devesse ser um epitáfio compulsório para qualquer professor no Brasil…

2 comentários:

  1. Ótima reflexão... também sou professora e é impossível não sentir uma forte identificação, mesmo trabalhando em um contexto bem diferente, em que, basicamente, os alunos foram abandonados pela prefeitura, e acham que um aplicativo em celular vai resolver...
    Triste epitáfio, mas nesses tempos, insubstituível

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