Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

18.6.20

Dia 93: por Regina da Costa da Silveira

A máscara em quadrinhos de histórias

Sua máscara de pano, assim como você está a moldá-la de modo a cobrir nariz e boca, Lúcia, faz lembrar nossa colega Anita, em sua antiga instituição de ensino. Mas era com folhas de jornal amassadas que ela dava início às máscaras africanas em suas aulas de Literatura e de Língua Portuguesa.

Assim, ela cobria de barro o molde de papel e passava a alisá-lo com as duas mãos até chegar à base da bola achatada contra a mesa e sentir seus dedos e toda a palma da sua mão acetinada e viscosa. Só então, com um clipe introduzido na ponta de um canudo plástico, que podia ser de uma caneta Bic, Anita traçava uma cruz de malta sobre a superfície, introduzia os dois dedos até encontrar o papel, fazendo furos  para os olhos nas pontas horizontais da cruz, perfurava também o barro para que desse vazão à boca e, como quem acariciasse não mais o barro amorfo, mas já uma face humana, perfilava com gestos lentos o nariz.

Fui sua aluna em Letras, mas também a acompanhei como monitora em outras turmas e nunca esqueceria do modo como Anita agregava a turma em volta da mesa da maquetaria dos cursos de Arquitetura e Design, para uma releitura de Saramago, revisitando o talento do velho oleiro Cipriano Algor, protagonista do livro A Caverna. Aquilo pareceu-me resultar sempre em esculturas em movimento, de acordo com o que um certo Jean Laude escreveu sobre as máscaras.

A confecção daquelas máscaras dava-se como uma preparação para reanimar antigos seres mitológicos, seres insólitos dos filmes de terror, cenas dramáticas de contos, romances e peças teatrais. Ao final da aula, chegava-se ao símbolo da máscara como identificação dos sujeitos que a modelaram, momento em que os alunos apresentavam cada qual a sua máscara, observando como ela foi pensada, enquanto ia sendo construída, e quais as possíveis representações que ela então pronta sugeria.

Nesse ponto, a professora costumava observar com o grupo que, não obstante as medidas tivessem sido as mesmas, e o mesmo material tivesse sido utilizado, nenhuma máscara resultava igual à outra. Por certo elas evidenciavam que a diferença entre os humanos, esta que começa pela ponta dos nossos dedos, estende-se por todo o nosso ser. Nas referências do plano de ensino da professora Anita, constava o Dicionário de símbolos, de Chevalier. Tua atividade com retalhos de tecidos hoje, Lúcia, me puxou para lembranças antigas e para as reflexões que seguem.

***

Já éramos mascarados antes mesmo da COVID19 

Dentre as tantas funções simbólicas, uma delas chama atenção para o momento, a de que as máscaras preenchem uma função social, uma vez que são também verdadeiros espetáculos catárticos, em que o homem toma consciência do seu lugar dentro do universo e vê a sua vida e a sua morte inscritas em um drama coletivo que lhes dá sentido.

Mas tudo isso ocorreu há meses, muito antes mesmo da quarentena pela pandemia do Coronavírus. Agora que você está em casa a me ensinar pelo WhatsApp como se faz uma máscara para prevenção de adquirir ou de propagar o vírus, Lúcia, fico ainda mais atenta, pensando nos povos das aldeias, para quem você disse que vai doar mil máscaras de tecido, você junto ao grupo de idosos no trabalho de extensão da sua universidade.

Penso nos pobres moradores de rua, na dor de quem está sofrendo à espera dos respiradores, nos que sofreram perdas de familiares e de amigos por conta da pandemia. Quanta preocupação entre as pessoas que trabalham em serviços essenciais, da saúde, do comércio de alimentos, dos entregadores de gás e frentistas dos postos de gasolina. Penso na saudade, palavra única para dizer tanto, que só existe mesmo na língua portuguesa, saudade de gente querida que está no exterior, impossibilitada de abraçar seus pais e irmãos, até quando não se sabe; saudade dos passeios em grupo, e aqui me lembro das saídas de campo nos trabalhos extensionistas junto ao grupo de Anita na pesquisa sobre o silêncio da história dos negros nesta cidade, saudade, saudade, só saudade.

As aulas mal reiniciaram em março e veio a quarentena, distanciando milhares de alunos e professores de suas aulas presenciais nesta cidade e em diferentes pontos do planeta. Todos deveriam ficar em casa, aconselhados a participar de aulas virtuais, situação que nivelaria o mundo todo, não fosse a falta de internet e de recursos afins para muitos estudantes, senão para seus próprios professores. 

Aos quase três meses de quarentena, os professores continuam pondo em prática o que na verdade nunca antes praticaram ou sequer ao menos obtiveram treinamento básico, no intuito de agregar suas turmas com aulas a distância.

Li hoje uma homenagem no facebook da psicóloga Vera - membro do Clube de Leitura de que Lúcia, Anita e eu, junto a mais de duas dezenas de professores-leitores fazemos parte no Clube do Professor Gaúcho - para você, Lúcia, porque você foi matéria do jornal da universidade, como representante do projeto que confeccionou e doou máscaras de tecido a pessoas necessitadas.

É interessante pensar no segredo de quem está por trás de uma máscara. A máscara instiga e agrega o outro, a partir do enigma que só poderia ser desvendado pelos olhos não fossem eles, como as pontas dos nossos dedos, parte significativa da diferença em cada um de nós.

Quando fui pela primeira vez de máscara ao supermercado, tive a certeza de ser vista e de ver os outros como seres amordaçados por uma situação delicada e amedrontadora. Tudo lembrava a crise na saúde, e tudo se expressava pelo olhar, porque poupadas eram as palavras sempre que essas não fossem urgentes, indispensáveis.

Nas nossas entradas em locais públicos, não podendo levar as mãos à máscara, levantamos os olhos para encontrar o olhar do outro, desvendar por vezes os sentimentos e, à luz da ciência, manter a necessária distância entre os indivíduos, regra pré-requisito da razão.

Esquecemos das máscaras como magia de um espetáculo para pensar nelas com a urgência que o novo tempo requer no mundo inteiro. A máscara, então, pensada como objeto a ser confeccionado para atender à sua função físico-social. A máscara vista agora como agente regulador da circulação das pessoas; como dominadora e controladora do mundo invisível do novo vírus.

Com função aparentemente, e só aparentemente, inversa à da psicanálise e da psicologia, ambas com o objetivo de arrancar as máscaras do indivíduo para colocá-lo na presença da sua realidade profunda; a máscara que hoje irremediavelmente usamos esconde parte do nosso rosto, ao tempo em que desnuda uma situação irremediável e um mal até agora também sem remédio.  É quando se toma consciência do lugar que ocupamos diante do outro, e na presença solitária de nós mesmos percebemos a nossa vida inscrita em um drama coletivo, agora relacionado à verdadeira guerra contra o novo Coronavírus. 

6 comentários:

  1. Regina. Parabéns pelo lindo texto, obrigada. Muito orgulho por partilhar o clube de leitura contigo. No CPG. Gratidão.

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  2. Obrigada amiga Regina! Teu texto nós instiga, nos faz pensar nas máscaras que todos usamos antes da pandemia,diferentes das que usamos hoje para nossa proteção e das pessoas não queremos contaminar com o possível corona, ou com os nossos medos, muito bom estar contigo no Clube de Leitura, beijão. Rosilene.

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  3. Regina, querida amiga e companheira do C L, que orgulho de partilhar desse Clube tão especial contigo. Tua crônica clara, límpida porém, ao mesmo tempo, quando nos coloca como indivíduos, únicos, inseridos num coletivo, dramática e comovente. Obrigada por esse momento de reflexão. Grande abraço.

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  4. Parabéns Regina.
    Este comentario nos faz refletir:
    "Mascaras cativas
    Usadas
    Manipuladas...
    Afastando sorrisos...
    Adiando sonhos.
    Máscaras!"Maga

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  5. Belo texto, Regina! Obrigada...

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  6. Obrigado por esse salto do trágico ao sublime, profe!

    Beijos e saudades!

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