Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

19.6.20

Dia 94: por Lucas de Melo Bonez

Turva a noite. São tantos dias observando a casa detrás da minha. Pela janela que resvala gotas e mais gotas de uma inesgotável chuva, inesgota meu desejo de vê-la uma vez mais. Já são dias em que a vejo abrir e fechar janela, sem nenhum movimento a mais que desmonte minha peregrinação pela busca de seus olhos.

Da janela para dentro, canta o aguaceiro pela claraboia, contrastando com o inequívoco silêncio que habita em mim. Se a música da tempestade recria um balé de categoria discutível, o que não se discute mais é a insípida vivência que o isolamento me provoca.

Do computador do escritório para a caneca de café na cozinha, com uma breve passagem pelo pátio de roupas estendidas; um retorno amargo para uma sala vazia que canta e desencanta notícias sobre um cotidiano comum – mas ensandecido pela voz de alguns. Falta de máscara? Tropeços? Risadas infames? Delirantes afirmações? De que me serve tudo isso se, na calada solidão do meu escritório, eu mal posso contemplar um dia da felicidade de alguém? Rio-me da desgraça.

Ao menos, ao lavar a caneca, vejo um brilho diferente. Reluzente. Se é o reflexo artificial de uma lâmpada ou a minha esperança por sair livre no dia seguinte, não sei. Mas brilha alguma coisa naquela limpeza. Me boto a olhar o pátio de novo e a chuva vem insistente, tornando esse dia também insistente em não acontecer nada.

Ao retornar para o escritório, ponho-me na frente do computador e começo a escrever. A luz que vem da janela de minha vizinha brilha intensamente de novo. Posso ver sua movimentação, seu circular de um lado para o outro, suas mãos passeando pela imagem como se tresloucadamente se fizessem entender. Mas alguém aparece e tudo escurece. Não se vê mais nada acontecendo do outro lado.

Turva a noite. Turva a imagem de desejo para se transformar em preocupação. E, assim, segue a noite, que lacrimeja mais e mais as poças do meu coração.

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