Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

21.6.20

Dia 96: por Felipe Schroeder Franke

Num sábado de inverno de 2016, meu vô me ligou de manhã. Naquela época, eu andava ocupado de um jeito bem caótico, sem tempo ou rotina para quase nada, e muito em dívida com muita gente querida. Meu vô era uma delas. Ele me ligou, e me lembro de ouvir a voz dele enquanto me debruçava pela janela do meu apartamento, olhando um dia ensolarado (era ensolarado?) na Cidade Baixa. Falamos coisas simples, mas boas. Quando desligamos, eu afirmei comigo mesmo: eu preciso conversar mais com meu vô, e estabeleci que me obrigaria, apesar dos compromissos caóticos, a ligar para ele no sábado seguinte.

Um dia depois, meu vô passou mal e foi para o hospital. Ficou lá duas semanas, e morreu.

Hoje foi o primeiro dia de inverno de 2020. Chegou ontem, às 18h44, como se fosse o verão, e esse foi, de novo, um fim de semana ensolarado de inverno. Também me debrucei por minha janela, mas sem falar com meu vô. Meu espanto, hoje, era ouvir os barulhos de uma cidade que vive como se nada de diferente estivesse ocorrendo no mundo.

Às vezes eu penso que não seria nada fácil para meu vô passar por essa pandemia. Ele era um homem extremamente ativo, criativo e independente. Depois dos 80 anos, ainda perambulava anualmente entre o Sul (ele odiava o frio) e o Nordeste (ele amava as praias). Do pouco tempo que ficava em Porto Alegre, menos ainda era passado em casa. Ia de lotação ao Centro, ia toda semana no cinema.

Ele era um homem muito engenhoso, mas penso que nem sua inventividade seria suficiente para se manter feliz em casa por tanto tempo. Ele provavelmente teria inventado alguma desculpa para pegar o carro e ir na fazenda do filho em Encruzilhada do Sul, ou visitar as irmãs em Itapiranga. Seria um desafio às regras da pandemia, mas seria um respeito ao espírito aventureiro e ativo que lhe era tão próprio.

Na casa da praia, meu vô tinha um cofre. Houve um verão em que ele decidiu voltar a usar o cofre, mas não lembrava a senha. Passou algumas semanas testando senhas, metódica e progressivamente. Pesquisando, descobriu também que soprar um secador em vento quente (óbvio que seria quente) desencadearia não sei qual mecanismo de dilatação metálica do cofre. Sem senha, mas com muito método, ele abriu o cofre. Não lembro o que tinha dentro. Provavelmente não tinha nada que já não estivesse fora: meu vô gostava de um bom desafio.

Meu vô gostava de um bom desafio, de um bom vinho, e também gostava de um bom verão.

Esta pandemia seria péssima para ele, que - idoso, diabético e ex-fumante - cairia em cheio no grupo de risco. Mas ele adoraria saber que esse início de inverno abriu com um dia de verão em Porto Alegre.

Hoje de tarde, depois de terminar um de meus compromissos (hoje já um pouco menos caóticos que em 2016), servi uma taça de vinho gelado, e senti saudade de não poder compartilhar esse vinho, esse verão extemporâneo, e os desafios da minha vida com ele.

2 comentários:

  1. Teu avó brindaria esse dia de sol contigo Felipe. Que bela homenagem! Ele teria se orgulhado muito se pudesse ler teu texto.

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  2. Muito boas lembranças Felipe. Muitas vezes me pego lembrando como eram bons os telefonemas para falar com o Pai, normalmente nos domingos.

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