Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

23.6.20

Dia 98: por Ana Maria Meinhardt

O buquê de gérberas, rosas e lírios orientais interroga-me de volta. São vinte horas e há cinquenta anos Karin paria Betina no Conceição; vinte horas e Betina  responde à trinta felicitações paralelas. Hoje soube particularmente a feriado - o aniversário ou o hasteamento da bandeira vermelha (famigeradas bandeiras vermelhas). 

Queria dizer de como meu pai chegou apressado e beijou minha mãe sem lavar o rosto - "mas passei álcool", apressando-se ao banheiro antes de acompanhar-nos à mesa (9h). Dos agradecimentos seguidos de condolências pelas mechas canceladas de Karin; e seguidos de mútua comiseração, votos de fé e risadas irônicas entre minha mãe e sua sogra Leonor (10h). Do zelador Tiago lamentando o salão de festas interditado (mas minha mãe jamais festejaria em salão). Do cartão que Betina lançou à areia da gata no contorcionismo de adentrar a casa (15h).  E da sobreposição do mesmo nome por duas âncoras à fuga deste àquele canal (sempre).

Queria dizer de como negação, colapso e adaptação aplicam-se a cada um, um de cada vez se Deus abençoar - se Deus abençoar, as explosões sucessivas quarto a quarto; e de como temo encontrar gritos congelados quando caírem as máscaras. Dizer da autopiedade ofertando medo ("medo de quê?" "de tudo...quer dizer...não do vírus, da questão econômica"); e de como faz falta misturar meu asco defensivo - descobriu a pobreza agora, mãe? - ao delas (vocês, gurias), cozinhando nosso caldeirão de mágoas fervorosamente para perguntarmo-nos, afinal: isso tem gosto de quê? 

(Uma a uma brande o cálice. Ríamos. O riso nos escudava pra batalha. E o absinto da Cidade Baixa...que submergiu na memória).

A professora contou de alguém que perdia o chão ao andar de avião, não sabia ser entre um ponto e outro porque não se encontrava em lugar algum, e do vazio que o pânico possuía... Então Alguém costurou álbuns destas viagens para carregar consigo ao longo, e venceu. 

Meu pai cospe aos quatro ventos que é um ano de faz de conta.

É um ano de faz de conta pra quem não consegue contar. Não faz cantar esse agudo esdrúxulo e inesgotável de passarinhos assoberbados e guindastes inimputáveis. É incapaz de marchas fúnebres. 

As orquídeas observam minha sofreguidão, amordaçadas como eu, seus pescoços verdes agonizando ao luar; adentro-me, alucino. Privilégio mais polêmico que o tempo de alucinar¿ Que dinheiro pra ter cova e não esgoto. (Afogo em toneladas de flor).

A respeito do esgoto, entre pão e leite matinal a manchete: novo marco legal do saneamento. E discutimos Carris, uberização. Mormaço, mormaço...Ah, deixa eu sonhar o metrô em Porto Alegre que sonho é bússola em céu nublado, além do mais "prometo realizar o que estiver ao meu alcance" (só me alcança antes a realidade). 

A introdução da Voz do Brasil ilumina palhacinhes dançantes no palco do pensamento. E tecidos (vai macaquear nos panos, artista? Viu que o Soleil tá quebrando?). Infalivelmente lembro a performance de Daniel Lima Santiago, O Brasil é meu Abismo.

Lembro que meu abismo é meu princípio. Enfim embriagada, reverencio quem sofregamente relincha contra o vento, construtores de memória (vocês).

A Cidade de Deus é campeã, afirma o jornal. Outra vez. Cantamos parabéns. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário