Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

24.6.20

Dia 99: por marília-saldanha

Solidão solar

Ontem foi um grande dia para o Brasil. Um ministro da educação que desonrou o cargo e desrespeitou o povo brasileiro das mais diversas maneiras foi deposto. E o sumido do Queiróz, policial militar amigo do presidente com pê minúsculo, foi preso. Brindes com sucos de laranja! É neste espírito que escrevo. Mas não esperem uma análise política da nossa conjuntura. Aproveito apenas a atmosfera de renovadas esperanças para compartilhar com vocês minha experiência na pandemia e na quarentena. Desde que me propus a escrever, me vi fazendo contato com uma certa melancolia, serena e suave de fundo. Junto o micro e o macro como tintas e talvez saia um texto aquarelado, sigamos!


Pois o contexto do corona me pegou em fase recente de aposentadoria. Eu que fui aeromoça e psicóloga e que também enveredei pelo campo acadêmico com forte viés feminista, estou em pleno processo de reinvenção, aos cinquenta e seis. Imaginem-se chegar nesta fase da vida, morando só, começando a se tornar boêmia e com alma de artista se desnudando. Nascida em Porto Alegre, saí da terrinha aos vinte um e morei vinte cinco anos fora. Pois é, camaradas! Fui para o mundo sob as asas da Varig, morei em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Roma, em Los Angeles. Há dez anos que voltei para a aldeia.

Tornei-me uma mulher desengajada do mundo doméstico, tive dois casamentos e trabalhei ininterruptamente por mais de trinta anos. Pude me dar ao luxo, neste país de tanta desigualdade social, de parar e pensar para onde ir daqui pra frente. O que realmente me move? De tudo o que fiz e experimentei, o que pulsa dentro de mim? Estas interrogações andavam comigo quando no verão decidi reformar a cozinha. Os montadores chegaram quando já era recomendado evitar os contatos físicos. E foi assim que lhes disse “lamento não apertar sua mão” quando o senhor na entrada do meu apartamento estendeu seu braço na minha direção. Sejam bem-vindos neste contexto estranho!

Pois eu não tinha ideia, de quanto aquela cozinha renovada me faria feliz nos meses que se seguiriam. Virou palco para dançar, cantar, performatizar! É onde mais fico na casa. Preparo meus pratos vegetarianos, veganos e sorvo missô todos os dias, meu bálsamo benigno. O isolamento alargou minha relação com a solidão fértil. Se antes ficava bem, hoje fico melhor. Digo isto porque fui localizando com o passar dos dias que a solidão coletiva teve o efeito de me acalmar. Não estou perdendo mil eventos...claro que há as lives, mas ando mergulhando nos livros. E nas escrituras diárias. Escrevo há anos e agora mais.


Não se enganem, eu sinto saudades. Quando caminho no décimo andar, no terraço modesto do prédio, aqui no centro histórico, olho para o céu. Todo dia ele está lá diferente e lindo. Meu jeito de espreguiçar os pensamentos. E, às vezes, choro. Sinto tantas coisas. Amo viver. Caminhar por uma hora ou quase, é aquele bom encontro com o movimento e com o meu estado emocional do dia e daquele momento. Não se enganem, eu sinto saudades de vocês que não conheço. E de outras criaturas com quem senti a pele, o beijo, o abraço. Ah, não se enganem se eu parecer auto suficiente. Não, não. É resistência. Resistência adquirida com o primeiro corte que me afastou da família em 1986. Longa história. Mas estou de volta e todo dia observo as diferentes posições do sol.

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