Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

10.7.20

Dia 115: Marcelo Miranda Becker

Onde reside o otimismo

Todo fim de semana de folga é um bálsamo. A sensação que já se fazia presente no "antigo normal" só foi reforçada pela rotina da quarentena. Trabalhando com o noticiário, eu sou apresentado diariamente a inúmeros motivos para me preocupar, me angustiar, me desesperar com os rumos desta tragédia que vem anunciando a iminência do pior a cada dia, e a cada dia descobrimos que o pior foi mais uma vez adiado, mas segue à espreita, ali adiante, inevitável.

Trabalhar com o noticiário também me expõe à percepção inconveniente dos meus privilégios em uma situação extrema, que embora afete a todos em uma escala global, escancara e aprofunda desigualdades centenárias. Quantos podem de fato se dar o luxo de manter o isolamento social? Quantos podem trabalhar de casa, esperando o pico da contaminação passar? Quantos, aliás, ainda têm um emprego? E uma casa onde se isolar? Quantos podem lavar as mãos com regularidade, com acesso à água encanada? Como esperar que a soma de esforços individuais seja suficiente para retardar o avanço da pandemia, em um Estado que insiste em se omitir, em fugir da responsabilidade de prover condições mínimas de dignidade a sua população? Um Estado cujos líderes, ao se depararem com uma crise, têm como única ambição encontrar uma forma de eximir-se de culpa. É o mantra do “essa pica não é minha” elevado a plano de governo.

Perceber-se privilegiado também é um fardo. A afirmação ridícula já carrega em si uma culpa, uma vergonha de se queixar por tão pouco. White people problems. Classe média sofre. Reclamar de boca cheia. Não importa o bordão que me acompanhe mentalmente a cada infortúnio, o efeito psicológico é o mesmo: deslegitimar o próprio sofrimento. Toda vez que me dou conta de que eu, um homem-branco-hétero-de-classe-média-assalariado, ainda me sinto vulnerável, aterrorizado com a possibilidade de ser um vetor em potencial dessa doença, a construção lógica imediatamente a seguir é desoladora. O que sobra pros outros? Que merda de mundo este em que nos enfiaram.

Desde a adolescência me identifico como ateu. O fato de não acreditar no plano divino de uma entidade superior, no entanto, não significava para mim livrar-me de todas as crenças. Costumava dizer, com frequência, que o mais próximo de fé que eu experimentava era a esperança depositada no avanço da humanidade. A imortalidade seria alcançada não no plano espiritual, e sim no impacto que causamos na vida das outras pessoas, em uma sucessão de minúsculos passos que levariam, eventualmente, a um mundo mais justo, igualitário e fraterno. A pandemia, porém, foi implacável em abalar as fundações sobre as quais ergui meu templo de otimismo.

O Brasil de 2020 é um suquinho da desesperança. A coincidência de crises política, econômica e sanitária, aliadas a uma negação histórica de chagas sociais urgentes, fazem do país um laboratório do pior cenário possível. Nenhum outro lugar do mundo tinha tanta aptidão para a normalização do absurdo. Assistimos ao número de mortos escalar passivamente, dia após dia, também porque fomos condicionados, anos a fio, a relativizar as tragédias cotidianas. Somos brindados com exemplos diários do que há de pior na humanidade, do egoísmo sobrepondo-se a qualquer senso mínimo de coletividade, em nome de “não ser feito de trouxa”, atividade que deveria ser reconhecida como o verdadeiro esporte nacional. Como ter esperanças no futuro? De onde tirar forças para encarar um novo dia desta distopia?

Eu me refugio nos fins de semana de folga. Se a realidade é acachapante, ao menos vislumbrar a iminência daquelas 48 horas mágicas de alienação dedicada ao bem-estar tem me ajudado a encontrar razões para seguir em frente. É incrível o poder restaurador de uma bolha de amor perante os horrores do mundo. Porque para cada mandatário que afronta a ciência há um abraço apertado de bom dia. Para cada cidadão de bem que se nega a fazer o mínimo para o bem coletivo, há uma videochamada para conhecer o mais novo bebê da família. Para cada incursão em um supermercado lotado que nos faz chorar de desespero pelo medo de contaminar quem a gente ama, há uma receita nova a ser testada na cozinha.

Mesmo que a humanidade dê mostras diárias de que me falhou, é no amor e naqueles que eu amo que eu encontro forças para levantar da cama. É por eles que eu acredito que, a despeito de todas as evidências apresentadas até aqui, tudo pode ser melhor. Tudo tem de ser melhor. Por eles, eu não espero nada menos que isso.

5 comentários:

  1. Lindo depoimento. Maduro, sensível, responsável...um alento em meio a tanta falta de lógica e desamor.

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  2. O texto diz muito da minha percepção do que acontece, porém com um talento e uma competência inalcançáveis para mim. Parabéns Marcelo!

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  3. Belíssimo texto Marcelo!
    Inteligência e sensibilidade são marcas da tua trajetória como jornalista. Parabéns!

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  4. Tá complicado manter o otimismo, mas é isso aí,Marcelo. Amor! Grande beijo.pra vocês, querido.
    Eva

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