Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

22.7.20

Dia 127: por Antenor Savoldi Jr.

Não sei como vim parar aqui, mas deve ter relação com o fato de nunca ter sido capaz de manter qualquer tipo de diário. Nem mesmo agendas, aquelas com os dados pessoais na primeira folha, o calendário na página seguinte, e as demais divididas regular e meticulosamente em dias, as linhas indicando as faixas de horário, uma folha exclusiva para o planejamento antes de cada mês. Tenho diversas agendas iniciadas, o ano grafado em relevo na capa que imita couro, uma fitinha para marcar em que dia estamos. Uma agenda de 2013 poderia ser usada em 2019 porque os dias da semana e as datas coincidem – e tentei isso para evitar o desperdício de uma nova, havia uma daquele ano na gaveta. Mas para 2020, ano bissexto, a última agenda capaz de ser reaproveitada seria uma de 1992, essa eu não tinha, e tampouco comprei outra nova.

Nada disso vem ao caso, na verdade. As notícias da pandemia começaram quase que exatamente na virada do ano, e a curiosidade inicial foi se transformado ao longo das semanas em alerta, angústia, medo e enfim uma tensa resignação quando a quarentena tomou conta de nossos dias. Minha rotina não chegou a mudar muito, há uma tese de doutorado por ser escrita, intercalada pelos trabalhos de tradução e alguns textos jornalísticos originais, funções realizadas de forma mais ou menos solitária mesmo antes da pandemia. Porém, o recolhimento generalizado da sociedade prejudicou o bom andamento de uma rotina pessoal que havia sido alcançada com algum esforço, e que ganhava sentido no contraste com a velocidade das outras pessoas vivendo suas vidas normalmente no mundo lá fora, indo e voltando do trabalho, o horário de pico no trânsito e no supermercado. Uma vez que tudo isso foi paralisado, meu equilíbrio foi comprometido.

Mas só percebi o problema quando, mais uma vez, decidi iniciar um diário, já como uma tímida iniciativa para ter mais controle sobre os dias cada vez mais iguais e assépticos, aqui dentro e lá fora. Comecei com um caderno pequeno, brochura, de capa infantil, que encontrei na primeira ida ao supermercado durante a quarentena, momento de estocar mantimentos e materiais de primeira necessidade para enfrentar o apocalipse. Aproveitei as margens para colocar o dia do mês e da semana, e usei cada linha como um turno, onde indicava de maneira quase telegráfica a atividade naquela faixa de horário. Nos primeiros dias, as entradas se limitaram a coisas como “fichamento artigo”, “chamada gás” e “supermercado $148”. De maneira geral, cada página corresponderia a uma semana e, mais que um diário propriamente dito, o registro tinha uma função de agenda reversa, demarcando o que já havia acontecido sem nenhuma elaboração profunda a respeito – contrariando seu uso como ferramenta para reflexão, que costuma ser o principal argumento de especialistas para a manutenção de um diário.

Infelizmente, a empreitada logo foi abandonada. Dias depois, quando retomado, era preciso preencher os espaços retroativamente, em tentativas fracassadas de lembrar o que havia ocorrido em cada dia. Como estratégia de engajamento pessoal, comecei a anotar os filmes vistos quase que dia sim, dia não, um referencial que a princípio se mostrou bastante útil, mas também sem resultados práticos na efetiva manutenção do diário. A situação ganhou contornos dramáticos quando apareceram sinais claros de que eu estava perdendo a noção do tempo de maneira generalizada, colocando em risco compromissos com boletos bancários, prazos acertados e o próprio abastecimento da unidade doméstica. Era preciso insistir.

As páginas anotadas foram assimiladas a uma planilha de computador que servia como controle de custos, e vinha cumprindo seu papel com relativo sucesso. Adicionando um controle das atividades diárias em outra aba, qualquer omissão logo ficaria evidente, e poderia ser remediada. Apesar disso, a situação pandêmica limitou bastante também a frequência de despesas, cada vez mais altas pela inflação oportunista, mas concentradas em menos idas ao comércio – o que desafiava a própria confiabilidade de todo o projeto de monitoramento.

Não ter controle sobre os dias que passavam logo deixou os horários de sono e de despertar bastante acidentados, o que percebi quando acordei uma manhã com o barulho do interfone e, após censurar o responsável com um “já vou, mas isso são horas?” e lançar mão de todas as orientações de higiene e das melhores práticas de segurança sanitária, desci para atender um senhor de jaleco cinza que, após conferir uma lista em um formulário contínuo, desculpou-se dizendo ter errado o endereço, mas que já passava do meio-dia, e portanto não merecia tal tratamento. Concordei e lamentei o ocorrido, enquanto o fiscal – parecia ser fiscal de alguma coisa – se encaminhava para o prédio em frente, onde quem o aguardava era um vizinho que eu via pela janela toda manhã, em camisa social, tomando café, olhar sério enquanto examinava os papéis que sua impressora, também visível pela janela, cuspia em atividade ininterrupta.

Estava claro que o compromisso com uma rotina melhor exigiria disciplina e isso só seria alcançado com mais transparência e uma disposição mais clara de todas as atividades. Saídas com o cachorro, animal propenso ao sofrimento pela falta de rotina, passaram a ser registradas meticulosamente. As idas à farmácia, ao supermercado, ao açougue e à fruteira começaram a ser consolidadas em uma tabela, impressa e visível no hall de entrada. O consumo frenético de produtos de entretenimento de qualidade bastante variada, um dos pilares para a sanidade mental da quarentena, ganhou um espaço dedicado entre as planilhas, que agora além dos campos para o nome do filme, data em que foi assistido, diretor, e uma breve sinopse, ganhava um espaço para uma nota de avaliação pessoal, de 1 a 10, que logo se demonstraram bastante dependentes de aspectos externos à qualidade do audiovisual em si. A medida se estendeu para álbuns de música, séries e programas de televisão, e também livros lidos, que devido ao número muito menor na comparação com os demais produtos, ganhou tabelas específicas para indicar o volume avançado por dia, um índice que ganhava complexidade, uma vez que o número de páginas é inacessível em dispositivos eletrônicos de leitura, e seu percentual dependia do tamanho total de cada livro.

Mas também era fundamental, e isso logo ficou evidente, que tal esforço não comprometesse as atividades cruciais de escrita, tanto relacionadas à produção da tese, quanto às traduções e textos jornalísticos originais, categorias que ganharam os devidos monitoramentos em planilhas exclusivas para controlar a ordem e o avanço dos fichamentos, o número de caracteres digitados e de palavras traduzidas, com fórmulas simples, nada exageradas, indicando de forma automática a média diária em cada categoria. A sincronização com dados do celular permitiu combinar tanto os dados vinculados a sistemas de pagamento quanto o próprio tempo de uso de todos os demais aplicativos, o que expunha evidentes excessos de um ou outro quando contrastados aos dados anteriores tabulados manualmente.

Os gráficos também começaram a surgir entre as tabelas quase que por conta própria, mas sua impressão facilitava a visualização do todo e o planejamento dos próximos dias. Eles deixavam mais evidentes algumas correlações, caso notório entre o índice médio de lavagem de louça por semana com a produtividade acadêmica do mesmo período, bem como escancaravam a influência negativa que o alto índice de palavras traduzidas por dia provocava tanto na média por evento dos custos de supermercado, quanto no registro da média ponderada mensal de passeios com o cachorro. O ritual matinal de gerar os gráficos retroativos à média dos últimos sete dias para todas as atividades, além de eliminar eventuais distorções nos dados, transformou-se no momento mais esperado do dia, logo cedo, tomando café, olhando pela janela, acenando para o vizinho com a cabeça, que retribuía em claro sinal de aprovação enquanto também examinava os papéis que saíam vomitados de sua impressora.

A rotina estava definida, agora sem maiores percalços, e acordar pela manhã, cada vez mais cedo para consolidar alguns números e imprimir os relatórios em pastas bem organizadas já não era sacrifício algum. Foi em uma dessas manhãs cheias de trabalho, quando avaliava uma nova forma de otimizar os dados e mostrar além da média, a mediana e a moda nas categorias em que isso fosse pertinente, é lógico, uma vez que dados desnecessários só atrapalhariam, que o interfone tocou e, sem titubear, respeitando todas as orientações de higiene e das melhores práticas de segurança sanitária, desci para atender o mesmo senhor que havia confundido o endereço semanas antes. Com um sorriso por trás da máscara, falei que não havia problema, que enganos acontecem, mas ele, sério e seguro da informação, garantiu que desta vez o endereço não estava errado, e que precisava verificar alguns dos meus relatórios, que intuitivamente eu já carregava a tiracolo. Não cheguei a estranhar quando o fiscal observou que os números não estavam bons, de modo que concedi a possibilidade da existência de algumas divergências, mas não por má-fé ou desinteresse, senão pela velocidade com que algumas metodologias haviam sido aplicadas e eram corrigidas a cada dia, naquele dia mesmo havia acontecido. O vizinho acompanhava constrangido do outro lado da rua, e balançou a cabeça em reprovação quando o fiscal pediu que eu o acompanhasse até aqui para maiores explicações.

Como vinha dizendo, não sei como vim parar aqui, mas deve ter relação com tudo isso. Atesto e dou fé acerca das informações acima descritas, torcendo para que sejam suficientes para minha liberação e retorno às atividades regulares.

No dia 127 do ano de nossa pandemia, subscrevo-me.
ASJ

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