Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

23.7.20

Dia 128: por Rafael Balsemão

Súplica

Hoje acordei com o fantasma sentado no canto da minha cama, me olhando. Não foi a primeira vez.

Não sei precisar o exato momento em que ele se mostrou pra mim, mas acredito que tenha sido no dia 24 de março, quando, junto à última leva de colegas que ainda estava na redação, deixei o prédio do jornal em que trabalhava rumo ao home office.

É engraçado falar dele, porque nunca acreditei nessas coisas de espírito. Achava que, se um dia algo assim aparecesse, me daria um susto ou me mataria, como nos filmes de terror. Muito pelo contrário. Ele é puro silêncio. Teve um dia até que se materializou na forma do moço bonito que sumiu pouco antes da quarentena sem nem ao menos me dar tchau.

O primeiro mês em casa não foi fácil. O computador que peguei na empresa era lento demais, o que dificultava a lida diária. Fiz planos que me pareciam bem realizáveis. Ler alguns dos livros que estão na minha estante há tempos e que nunca foram sequer abertos. Zerar a caixa com todos os filmes do Hitchcock que ganhei há mais de uma década. Finalmente assistir à série Sopranos. Nada disso foi feito.

São problemas bem burgueses, eu sei, se comparados aos da maioria da população brasileira neste momento. Mas trabalhar com notícia me consumiu de uma forma que não sei explicar, o aumento do número de mortos dia a dia foi me deprimindo, deprimindo. 

O expediente acabava, e eu ia para o meu quarto praticar exercícios físicos - era só o que conseguia fazer. Lá tem um espelho gigante que uso para ver se o movimento está sendo executado da forma correta. Ali o fantasma apareceu várias vezes, quieto, me observando.

Enquanto levantava peso não era tão ruim assim a presença dele. Deve ter a ver com aquela substância boa que encharca o corpo quando praticamos esporte. O brabo era quando acabava, no banho. Não sentia medo, mas desespero. Não foi uma nem duas vezes em que chorei debaixo do chuveiro, soluçando. E ele sempre lá. Imóvel. Para evitá-lo em meio à frieza dos azulejos do box, cheguei a dormir sujo algumas vezes.

Passado um mês de trabalho em casa, fui demitido. Não foi inesperado, já imaginava que em algum momento aquilo pudesse acontecer. Rolou um pouco de preocupação por conta de grana, mas logo me dei conta de que aquilo não fazia mais muito sentido pra mim. Deixar o jornal até que foi simples. Difícil foi perceber a presença cada vez mais constante do fantasma por perto.

Engraçado, porque ele nunca aparece nos meus sonhos. Tem dias que vou pra cama por volta de meia-noite, esgotado, e o espírito está sempre ali comigo. Não me deixa dormir. Esses dias vi o sol nascer com ele do meu lado. Quando surge em forma de gente, até sorri pra mim, o desgraçado. Tem dentes bonitos.

Tentei aceitá-lo, enfrentar o monstro, como indicam os terapeutas. Quem sabe entender que agora ele faz parte da minha vida trouxesse algum alívio. Depois dessa mudança de atitude, até passei uns dias mais tranquilos, mas não adianta, é impossível se acostumar.

No meio de toda a desgraça, até tenho alguns momentos de felicidade. E é a essas pequenas coisas, quando consigo me desligar do noticiário e da contagem das vítimas, que tento me agarrar para seguir adiante. Isolado em casa, emagreci e passei a me alimentar melhor. Quase não tenho bebido. Finalmente consegui entrar para o grupo de pesquisa de um professor que tanto admiro da faculdade de Letras. Rolou até um trabalho super bacana nesse meio tempo, mesmo que temporário. Aprendi a rodar com o bambolê na cintura. Tomei coragem e puxei assunto com o rapaz poeta. Ele correspondeu.

Comemoro, sim. Mas não tenho paz. 

Os dias mais frios têm sido especialmente difíceis. Não gosto nem de lembrar, teve uma noite de domingo em que, enquanto lavava a louça, aquela água gelada acabando com a pele das minhas mãos, o fantasma apareceu. Não o vi. Só me dei conta de que ele estava ali - dentro de mim, ao meu lado, na pia, na minha roupa - porque senti minha respiração ofegante demais, numa ansiedade absurda.

Queria muito que o espírito fosse embora. Até cogitei propor uma troca: que o vírus viesse para substituí-lo. Mas com ele não há negociação. Amanhã vai fazer quatro meses que o negócio está comigo. Já pedi tanto para que ele vá embora. A merda é que não acredito em Deus, poderia rezar se fosse o caso. Nem isso.

Não aguento mais. Estou exausto. No meu limite.

Não sei se você gosta ou sabe ler, fantasma (ou sei lá o que seja você), mas se estiver aqui, acompanhando as palavras deste diário, por favor, vá embora.

Eu imploro.

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