Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

26.7.20

Dia 131: por Leandro Ayres França

A utopia é a pior inimiga do solitário. da solidão. Não lembro a frase exata do autor. Mas a grifei no livro. Penso nisso enquanto olho para uma cidade adormecida ao pleno meio-dia. E, enquanto penso nisso, me pergunto se é assim que uma cidade sonha. E, enquanto me pergunto isso, penso o quanto é curioso eu me lembrar de citações de livros no meio dos sonhos. Hoje é o centésimo primeiro dia de quarentena. Não deve ser. Não estou contando. Só nos filmes se contam dias de quarentena (e presos riscam os dias nas paredes da cela). Mas, parece que um registro de quarentena só faz sentido a partir de uma centena.

No início, estabeleci uma rotina rígida. Acordar. Passar o café. Ler por uma hora. Passear no parque. Resolver trabalhos menores. Lavar a roupa. Almoçar. Dieta controlada. Ler trabalhos acadêmicos. Passar o segundo café do dia. Fumar um cigarro. Verificar as correspondências. (ooi) Fazer exercícios. Caminhar rumo ao pôr do sol, pela orla do rio. Preparar um lanche. Passar mais um café. Lavar a louça. Acender um cigarro. Estudar. Preparar o jantar. Reduzir o consumo de carne. Verificar as mensagens. Arrumar a cama. Ouvir música. (tu gosta da carreira solo do thom?) Adormecer. Repetir. Um regime de isolamento autoimposto e disciplinado. As poucas notícias que eu lia com atraso davam conta da disseminação do vírus. A humanidade apanhando de um agente invisível e sem bandeira, obrigada a se recolher sem qualquer outra estratégia à disposição.

Mas não era do vírus que eu me refugiava ao estabelecer a rotina de um autômato. A assepsia era emocional. Quando as pessoas começaram a extravasar suas reações numa livemania incessante, me desconectei. E desconectado foram se fundindo sonho e realidade. Porque, além das citações de livros, sonho com ambientes vazios de móveis e pessoas. (isso é sinal de psicopatia) Caminho por amplos apartamentos, edificações abandonadas, escadarias de diferentes formatos me conduzem a outros andares e cômodos desabitados, portas me introduzem a espaços distintos, vez ou outra na companhia dos meus cães. Às vezes faz sol no quintal de uma casa, na maioria é noite úmida de verão numa metrópole pouco iluminada. No fundo, a cidade foi feita para se tornar ruína. Essa é outra citação que me ocorre. Na maioria dos sonhos, caminho com familiaridade por edificações desconhecidas. Raras vezes, identifico prontamente o lugar, como há poucas noites quando sonhei com o meu próprio prédio, abandonado, saqueado e com as vidraças todas estilhaçadas. São sonhos mudos e, nas muito raras ocasiões em que sou surpreendido, sem alarme, por alguém, faltam-lhes voz. (achei curioso o fato de tu receber cartas em sonhos?) São mensagens, não cartas. (eu adoro terminar afirmações com interrogação) Tem uma diferença aí: cartas pressupõem carteiros e eles não aparecem nos meus sonhos. Não me lembro de alguém ter me contado que sonhou com um carteiro. Dias desses, ia perguntar isso para a Julia. Se ela já tinha sonhado com um carteiro. A pergunta engasgou porque logo ela me convidou para escrever. O registro num diário da pandemia. Engoli a pergunta e a recusa. Vou tentar. Se tivesse uma filha, se chamaria Julia. Engoli também esse comentário. (ah, uma pergunta importante: assistiu anima?)

Há dois meses, sonhei que estava no parque. Reconheci o lugar. Por isso o artigo definido. Céu limpo e frio, típico das manhãs de inverno em que o sol parece mais um reflexo. As duas cadelas disputavam galhos secos. O terceiro, mais velho, à sombra de uma árvore, contemplava distraído e sereno o mundo, um tanto aborrecido com a agitação das duas. Ela se aproximou e se sentou ao meu lado. (tu é paulista?) Num breve romance de sonho, partilhamos informações sobre nossas vidas. Eu sei, é título de um livro. (achei uma bela coincidência) Na despedida, trocamos os nomes. Anotei uma mensagem: Hoje conheci a B. O sonho se repetiu. Outras manhãs. Nos reencontramos sem combinação. E, por vezes, nos perdemos. (ontem de manhã, por sinal, procuramos vocês) O diálogo é retomado no exato ponto interrompido. (ba eu acho sagita meio complicado) Seis planetas em sagitário. (mas na vdd tu não parece ser assim) Sentamos, cada encontro, mais próximos. Me ocorre que tudo isso acontece à moda antiga. (estou lendo Gabo) Cem anos? (amor nos tempos do cólera) Quantos anos eles demoram pra ficar juntos mesmo? (são décadas) Deduzo que não estamos indo tão devagar assim. (tentando tirar uma música no uke) E ela me envia um arquivo de áudio. Isso me parece romântico e antiquado. Em plena distopia pandêmica, somos fora de moda. Quero encaminhar para alguém, mas os sonhos são desocupados. Exceto, agora, por ela. (faz meses que tô com insônia) Lembro-me daquele livro em que uma mulher deixa de dormir. Ela cita um trecho de outro Muramaki Murakami. Hakuna Matata. Sempre erro a grafia. (o incolor tsukuru) As manhãs se repetem, se confundem. (eu talvez possa ter te mencionado pra minha terapeuta) Sorrio, mudo. Compartilhamos nomes de filhos. Sonhamos dentro dos sonhos. Tipo Inception. Martina, Artur. E Julia. O mundo parece encolher. (eu preferiria o almoço contigo) E então almoçamos. E nos beijamos, enquanto os cães brincam embaixo da mesa. (foi meu jeitinho de dizer que quero ir na tua casa logo) No sonho seguinte, abro a porta e a deixo entrar. Nos lábios, dois mundos colidem. Sonho e realidade se fundem.

Já não consigo distinguir os dias da semana. Parece domingo, mas todos os dias se parecem domingo. Se for, explica a cidade assim adormecida. Fugir do mundo só tem sentido num mundo imperfeito. Me ocorre essa citação. Enquanto penso nisso, sinto a presença de mais alguém na cama. O cômodo todo vazio, uma manhã confortavelmente muda. No rodapé do diário, anoto o nome da destinatária. Lanço um último olhar para a cidade, satisfeita por se ver livre de seus habitantes e poder ser, enfim, apenas concreto. É outra citação. E já não sei se sonho.

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