Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

27.7.20

Dia 132: por Rochele Bagatini

Centésimo trigésimo segundo. Houve um vácuo de palavras desde que escrevi um diário a respeito da pandemia, um dia remoto, no início dela, entre o vigésimo e o trigésimo. Lá ainda curtia uma espécie de parada, algo como se fosse possível parar a vida. Como se fosse possível esperar pelo fim da pandemia, como se a vida não estivesse sendo vivida com todas as suas nuances, algumas mais vívidas ainda. Não sinto mais o momento de transição, aquela sensação do vigésimo está perdida. A vida continuou seu fluxo, e eu acabei conhecendo mais em cem dias do que conheci em anos. Conheci mais sobre mim, meu companheiro, meu cachorro, meus pais (ao longe assumi a função de tentar informar melhor e monitorá-los, justamente porque não podia estar perto, e provavelmente porque a impossibilidade de visitá-los fez brotar o remorso por todas as vezes que não fui vê-los). 

Voltando ao diário depois de cem dias e parece que nem estamos mais “em plena pandemia”. Meu coração já não está mais pleno de pandemia, já não penso tanto nisso, nem atualizo o número de mortos. Eu nem sei mais o número de mortos, isso é vergonhoso? Impregnei o tempo da pandemia plena em tempos meus. Polarização: tempos coletivos, tempos nossos. O barulho dos carros nas ruas, as vozes, a agitação.... É muito mais fácil para mim que estou no alto das nuvens, na minha própria montanha mágica. Eu, por mais que no início tivesse indícios de que as coisas seriam difíceis, quase nada lamento até agora. Mas não chego a sentir saudades da pseudo-plena, tenho compaixão. E aqui do alto parece ainda mais que o tempo passará rápido, levando tudo o que se criou: virão outros tempos, de outras pessoas, de outras pandemias, a ocupar a mesma montanha.

A vida não parou: fui pedida em casamento em plena pandemia. Fui pedida em casamento num dia chuvoso em que ele me levou clandestinamente até aquela ponte e, depois de uma hora no carro, com a desculpa de que queria me fazer uma surpresa por nosso um ano e meio de namoro, me conduziu até o alto do pórtico de Nova Petrópolis, onde há uma passarela maciça, imitando uma torre. Ali, com trilha sonora de um ou dois carros que passavam pela estrada abaixo, retirou uma carta do bolso, leu com a voz tremelicosa, se ajoelhou com uma caixa de anel aberta, e me pediu em casamento. Nenhuma testemunha. Duas aves passaram granindo um diálogo, se eu fosse mística diria qualquer coisa de sagrado, mas acho mesmo é que nem nos perceberam. Nós passamos um tempo entretidos com elas, agradecendo sua companhia. Foi o centésimo vigésimo dia da nossa primeira pandemia. Dia pleno de comoção e deslumbramento.

Comecei a plantar lá pelo vigésimo e depois das primeiras colheitas de rúcula e de cenoura, fiz curso de plantio em pequenos espaços na Embrapa, fiz curso de Permacultura no IPEP, participei de lives de agricultura, adquiri sementes orgânicas, e estou plantando, na minha mini sacada, sementes em consórcio (couve-manteiga, lavanda, abobrinha, hortelã, coentro, moranga, feijão-branco, tomate-cereja, manjericão, manjericão-roxo, morango, alecrim). O modesto plantio inicial transformou-se num plantio variado de experiências e numa perspectiva pós-plena de ter uma estufa em algum lugar do interior, longe o bastante para me abrigar na próxima pandemia e, quiça, produzir comida para mais pessoas. Fazer a revolução no campo. Em pleno delírio. 

Agricultora ou escritora? Uma amiga disse: “a arte nunca foi tão necessária como agora, ontem li um conto teu e a leveza dele me fez sentir bem, tem que escrever mais”. Só penso que contos meus com leveza são raros, será mesmo que devo escrever? Devo concordar que parece mais claro ainda que ler (e como tenho lido nesse momento!!) dá um sentido de estar me movendo neste tempo, mesmo que esse movimento não me leve para lugar algum, a não ser para a morte. Mas, se não existe lixo, se nada vai embora, nem mesmo eu posso ir embora. A morte é só do corpinho como ele é hoje, e da alminha, tão frágeis como o vírus que morre com sabão. 

Gotejam trabalhos e estudos on-line. Aprofundei-me nos estudos sobre o colonialismo em Moçambique. Fiz um trabalho para o portal SAS de Educação sobre o livro Caderno de memórias coloniais que estreou no vestibular da UFRGS. Li também Os cus do Judas e Niketche para o grupo de estudos, livros que tratam do violento colonialismo. Não importa se o homem é negro ou branco, colonizador ou colonizado, a violência sexual contra a mulher ocorre independente da raça. Ocorre independente dos limites geográficos, europeus ou africanos, tanto nas questões de assédio quanto no que tange os julgamentos preconcebidos sobre o papel da mulher. Às vezes acho que acordei muito tarde para esses assuntos, mas ficar dormindo não é mais uma opção.

No meio dos cento e poucos dias, confesso: precisei ver meus pais e receber meu irmão. Digo “precisei” para suavizar o delito. Como é que se faz para estar com as pessoas e não tocá-las? Não tocar é um pouco como não ver, porque vemos quando as peles se tocam, quando sentimos o coração delas batendo, quando sentimos seu calor. Quantas palavras a mais são colocadas no lugar do toque? Mas eles, a quem achei que deveria dizer como se cuidar, se lavar e como não transmitir... eles lá, tão adultos, fortes e conscientes, saudáveis, emocionados. Infecção afetuosa plena. 

Tenho ainda coisas a desenvolver neste diário, como o episódio da segunda temporada de Cosmos, o sétimo, que trata das geniais abelhas, e como elas me tornaram menor e melhor. Também quero contar sobre ter parado de tomar medicamentos, e sobre ter aprendido culinária circunstancial, mas nada disso precisa ser dito com pressa, talvez mais cem dias de tempo e espaço e os assuntos fermentem. 

Parece-me que a única plenitude é a contingência. 

2 comentários:

  1. Rochele, é a primeira vez que te leio e fiquei iluminada. Melhor: estou me iluminando. É um rio. Um curso. Obrigada. Eu às vezes gravo leituras no fbook. Sou leitora particular e radialista. Vou gravar o teu escrito hoje. Se tu me permites. Quero gravar todos esses bonitos escritos que nos dão abrigo, acolhem demais.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Eliana, mas que honra! Eu não tinha lido ainda essa mensagem, que alegria imensa. Pode gravar sim, vou te procurar nas redes. Obrigada por essas palavras, eu é que fiquei iluminada.

      Excluir