Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

30.7.20

Dia 135: por Caue Fonseca

O charmoso ancião aqui de casa marcou presença no casamento dos meus pais. Não como convidado, mas como parte do enxoval. Trata-se de um fogão Brastemp Luxo amarelo baunilha, do tempo que o logotipo da marca ainda era um esquimó arrastando um trenó. Com a ascensão do movimento hipster, o amarelão se tornou a estrela da minha cozinha. Costumam perguntar se ele é antigo mesmo ou um modelo vintage, tal a belezura do coroa.

Ali por meados de maio, após mais de quarenta anos de idas no sentido horário e vindas no anti-horário, um dos botões girou em falso – não à toa o mais usado, correspondente à boca inferior direita. Constatei, desolado, que uma parte interna havia se quebrado. Com massa epóxi e um pouco de engenhosidade, um curativo foi improvisado enquanto aguardamos na fila do transplante – o kit de seis botões originais sai por R$ 82 no Mercado Livre.

A peça do fogão de duas gerações não foi a única vítima material do coronavírus. Somente na cozinha, a porta do freezer, muito mais jovem, de uns meses para cá deu para se abrir quando a geladeira é fechada com muita força. Novamente improvisei. Em vez de borrachas novas, a porta do freezer agora é mantida cerrada por uma tranca para bebês. Tumelero.com. Chega em dois dias e tem frete grátis acima de R$ 150, então comprei junto uma luminária.

O insight mais óbvio desses meses de reclusão é de que não somos feitos para ficar tanto tempo em casa. Mas venho sendo lembrado do oposto: nossos lares também não são feitos para nos suportar por tanto tempo. Nem a mobília mais nos aguenta.

Porque tudo bem girar por quatro décadas de almoços. Mas não há botão que aguente quatro meses de idas e vindas para toda e qualquer refeição, do ovo cozido matinal ao chá de camomila noturno. O robozinho aspirador está coxo: a escovinha esquerda às vezes para. Tendinite, de certo. As lixeiras também desistiram. A da cozinha parou de responder hoje ao comando de abrir a boca ao receber um pisão. Fez um movimento parecido com um dar de ombros e se manteve fechada. É o mesmo defeito da lixeira do quartinho, a de recolher torrões de xixi de gato.

O gato, aliás, ontem olhava desolado para a pia que há 13 anos serve de bebedouro de água corrente. Havia ali uma pequena piscina. Mesmo com bem menos cortes de barba do que o normal, o encanamento enfim entupiu. Tentei abrir os metais debaixo do balcão para limpá-los e descobri uma estrutura completamente apodrecida. A substituição vai depender da agenda do faz-tudo aqui do prédio que, pudera, está assoberbado de trabalho.

E há ainda os móveis e itens de decoração vítimas inocentes do meu tédio. Porque tudo bem aquela colcha manchada no quarto de hóspedes, mas ele agora serve de escritório, e não quero olhar para a bendita mancha todos os dias. A falta de uma das folhas da persiana seria quase imperceptível, não fosse a nesga de sol que passa pela fresta e atinge exatamente o meu monitor. Já essa cafeteira de R$ 89 trabalha bem, mas talvez seja a hora de uma funcionária que já me desperte com o café passado. Amazon.com. Pesquisar.

Não, espera. Certamente algo vai se quebrar e precisará ser substituído.

Será a mola do sofá? O teflon da frigideira? Impressão minha, ou o lado esquerdo do fone de ouvido silenciou? E esse controle remoto, será a pilha ou o botão? Como eu nunca havia reparado no frio que entra pelas frestas dessa janela? Qual é o melhor modelo de aquecedor? YouTube.com. Pesquisar.

A cada dia entendo um pouco mais os presos que queimam seus colchões. Mais alguns meses, e restaremos eu, a fatura do cartão estourada e um impávido jogo de duraléx.

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