Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

31.7.20

Dia 136: por Loren Hofsetz

O dia D / Maio 2020

Depois de sessenta e poucos dias em uma casa, isolada do mundo, sem ter contato físico com ninguém ( ops! Desconsiderem o abraço com toalha que arranquei da minha irmã em meu níver ) escutei a frase: "Hoje é você quem sai, Loren. Com 60 dias de casa. Você é a mais nova portoalegrense a pôr os pés na rua." Quem me recebeu? A Bruna Casagrande, ou Bruna Leifert, me acolhendo e mostrando o novo normal que vivemos.

Foi louco tudo isso, eu me achando centrada, me vi assustada já imaginando os outros que não se cuidam. Levei até álcool gel e um frascão de líquido 70 em spray para colocar na sola dos sapatos e não sujar o ambiente onde iria... usando viseira e tudo, pronta para sequenciar o DNA do vírus. Estava muito “bem vestida”, a secretária nem me reconheceu quando eu cheguei. Aliás percebi que a gente até desconsidera a vaidade e tenta suprir a esquisitice da vestimenta com conversa inteligente e simpatia, e olhe lá. Na verdade, também me dei conta que essa minha nova versão prefere ficar quieta, porque, quando a gente troca um "oi" com alguém, o ser logo se aproxima pra conversar o que, obviamente, ocorreu. Logo depois que cheguei ao estabelecimento, entrou uma mulher charmosa, com uma faixa de tecido amarela e máscara da mesma cor abotoada na própria tiara, contrastando com a pele negra. Linda! Eu cheguei com viseira, com a cara de quem iria fazer a cena de “Flashdance”, mas a versão da escola, no sexto ano do primeiro grau* e na aula de educação física. Cara evidentemente preocupada com a coreografia, porque estava com olhos arregalados. Ela não, ela cheia de sorrisos. Olhos sorrindo, quase gargalhando. Expressivos. Foi bom ver alegria plena e beleza nessa nova fase, pois me fez relaxar e comentar sobre sua proteção, aliás... meu vacilo. Pra que? Por que não fiquei em silêncio? É claro que ela se virou em minha direção, eu sentada, e começou a se aproximar, falando. Eu quase saí correndo pela porta da frente, mas cruzei as pernas para deixar uma distância, mantendo a histeria elegante, mesmo com o aparato no nariz e na boca, e só faltou me deitar na cadeira para chegar a 1km de segurança. Daí conversamos, mas ela logo se afastou, aleluia, para mostrar os acessórios de proteção à secretária.  A mesma estava alucinada, passando jatos de álcool 70 na bancada, depois de ela eu termos estado. Serviço inútil, porque a mulher pôs a bolsa no local, tirou umas máscaras fechadas e começou a mostrar... ( eu imaginando a dança debochada do Corona pra gente.) 

Por sorte, naquele momento, essa paciente foi chamada e eu respirei, aliviada, pois agora estavam na sala de espera apenas eu, as bactérias dos sapatos e alguns vírus de outras gripes... e claro, a secretária obcecada com álcool gel. Então relaxei e, quando fui pensar no que iria comer (porque a pandemia me faz pensar muito sobre isso), lembrei que estava no dentista. Que teria que abrir a boca pra ele. Mil vezes um ginecologista a essas horas. Mil vezes! Eu até protelei a consulta, mas era preciso e, aliás, pensando bem, foi ele quem me tirou da casa!!!!!! Fiquei mais tempo, porque conquistei a simpatia do meu sofá, mas bastou eu falar que faziam meses que a gente não se via, então ele me chamou. Fiz ele lembrar de mim... Ah esses amores mal resolvidos... Capaz, ele é bem casado e a mulher é um amor. Foi necessidade mesmo. Óbvio que subi as escadas quase levitando pra não encostar em nada, tudo branco, falsamente puro, me iludindo, mas eu já estava me distraindo, porque mentalmente estava obcecada na torcida para o dentista estar com viseira. Surpresa!!!! Estava Sem! Estava apenas com uma máscara da 3M, como eu, entretanto a dele superior, não a da alta voltagem dos hospitais, mas daquelas bem boas. Entrei na sala quase acuada e logo ele passou álcool nas mãos, aquilo foi impactante, quase me desarmou, tremi de desejo, pedi também, fissurada, e ele claramente percebeu o meu vício, mas rapidamente colocou as luvas e me chamou para a cadeira dele. Frio. Assim... sem perfumaria. Eu precisando tirar a máscara de supetão, como se eu tirasse sutiã na frente de um amigo e ele ali... só esperando. Eu nunca tirei sutiã na frente de um amigo, a propósito. Talvez em um camarim... por causa da troca do figurino de ópera, sei lá... Voltando à cena. Antes de tirar, fiz aquelas perguntas de virgem na primeira noite, "Está com camisinha?", " Trouxe pelo menos?", "É pra usar", "Não. Não é negociável!" ... Tudo ele disse sim. Averiguei se era verdade e se tudo estava esterilizado, não pude verificar a qualidade da máscara, iria contaminar, mas cuidei tuuudoooo o que ele fazia. Até perguntei se o pano branquinho onde ele deixou os instrumentos havia sido trocado. "Trocou o lençol?". Enfim, quando me acalmei, tirei o aparato e me deitei rapidamente, abrindo a boca e fechando os olhos, eu não sabia o que veria. Claro que ele me viu como inexperiente, pois logo veio a pergunta: "Que que tu está fazendo? Preciso te perguntar algumas coisas." E eu, em pensamento... "Não fala nada. Fica em silêncio. E se as gotinhas de saliva saírem pela máscara????" Mas olhando ele e vendo que sabia o que fazia, deixei a Loren sensata, a experiente, a resolvida e audaciosa chegar e fingi que ele dominava a situação: "Me diz que faço tudo direitinho... como tu preferir. Apenas hoje." 

No final das contas deu tudo certo. Foi rápido e ainda bem, porque fiquei esgotada de reaprender a sair de casa, entretanto depois foi tão tranquilo que deu até aquela sensação de normalidade. A nova realidade só se escancarou quando eu abri uma nova máscara, peguei novas luvas, pus a viseira, me ESQUISITANDO para sair da sala do dentista e estanquei na porta, pensando se pegaria na maçaneta para infectar minha luva, então fui rapidamente socorrida por ele, que abriu a porta para mim como me dando as boas-vindas ao novo mundo, espontaneamente me dizendo que eu me adaptaria rápido. Que daria tudo certo. Mesmo assim os meus olhos arregalados voltaram, ainda que eu tentasse fazê-los sorrir e o sorriso falso não apareceu, pois estava coberto com máscara. Felizmente, segundos depois, eu acreditei no dito e veio a alegria real. A sensação de segurança por ele ser super cuidadoso e eu aprendendo a confiar que me cuidando não teriam problemas. Quase o abracei. Que susto.
  
Então deixei o consultório feliz, realizada, porque nós todos ali nos cuidamos e estamos nos adaptando, mas bastou sair na rua e lá estava o povo portoalegrense sem máscaras... afff, por esses, uso viseiras. Não dá nem pra olhar no olho, provavelmente virá uma pergunta: "Onde fica a rua tal?" Então, pra não sair correndo, aproveito a defesa acrílica, me precavendo de perdidos de logradouros alheios. 

Boa sorte ter a Bruna me esperando. Cheguei sã e salva em casa. Lógico que aí veio outro capítulo... o chegar em casa... mas é para outra história. Já devo ter esgotado quem chegou até aqui, e que talvez entenda essa nova fase vivida depois de tanto tempo reclusão. Faz parte. Vamos nos adaptar e viver a nova normalidade. Acessórios obrigatórios na cara e na bolsa. Para a troca. Sacolinha para descarte dos EPIS também, para não expor os coletadores. 

Boas vindas novos tempos!!!! Que passe logo a pandemia!!!! 

PS: Com "água sanitária" não se faz enxágue bucal só porque o dentista, COM máscara, falou na sua cara enquanto lhe atendia... portanto, não faça isso, pois "pode queimar" a língua. Queime a língua de outras formas, comendo brigadeiro quente, por exemplo. 
PS2: *Sexta série se usava no século passado. Fazia parte do hoje chamado ensino fundamental. Wikiloren

13 comentários:

  1. Adoro os textos (e a alma) da Loren. Com humor, consistência e leveza, ela nos leva a refletir e a sorrir. A vida é mais bonita com a Loren e seus textos. Obrigada pelo diário... que sigamos a cada dia. Beijos

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  2. Sensacional! Mergulhamos nas palavras, sentimos e vivenciamos cada detalhe deste conto extraordinário!

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  3. Loren, amada!! Que lindo texto e reflexão do nosso mundo na pandemia. Sempre com graça, classe e muita amorosidade, tuas palavras nos acalentam essa rotina de angústia que estamos vivendo diariamente e acalma o coração - já que estamos TODOS no mesmo barco. Um beijo grande da tua fã, Nati Barone.

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  4. Genial como sempre. Qdo sai teu livro Loren??? Estou a espera! Seria um bom projeto pandêmico 😘

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  5. Tu é muito corajosa. Eu cancelei a minha ida ao dentista aqui. Mas tem uma luz no fim do túnel! Já passamos 4 meses em casa. Só faltam 8. Ou talvez 10.

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  6. Excelente, amiga! Sempre inspirada e inspiradora.

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  7. Vi você em cada cena aqui narrada, excelente, adorei 😂😘

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  8. Isso aí Loren!! Teu talento para descrever o cotidiano é incrível!!! Antes, durante e com certeza depois da pandemia!!! Obrigada!!

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  9. Isso aí Loren!! Teu talento para descrever o cotidiano é incrível!!! Antes, durante e com certeza depois da pandemia!!! Obrigada!!

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  10. Isso aí Loren!! Teu talento para descrever o cotidiano é incrível!!! Antes, durante e com certeza depois da pandemia!!! Obrigada!!

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  11. Viagei junto na tua narrativa. Muito bom!:)

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  12. Viagei junto na tua narrativa. Muito bom!:)

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  13. Adorei Loren! Obrigada por trazer leveza a este momento em que “sobrevivemos”! Quando saíra o teu livro?

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