A quarentena alheia é mais verde
Eu invejo quem está isolado, reclamando que, dentro de casa, os dias passam iguais. Pois aqui fora os dias também passam iguais: igualmente repletos de ansiedade, como uma nova arritmia a cada flagrante desrespeito à saúde coletiva, de quem insiste em tá na rua sem necessidade, de quem vem até mim. Afastada da faculdade, da bolsa acadêmica, da possibilidade de iniciar um estágio, não posso reclamar de conseguir manter meu café semiaberto, como parte desta indústria essencial que é o serviço de alimentação. Mas preferia que não viesse ninguém. É um contrassenso, mas assim é 2020. Era pra ser o meu ano, estava resolvido! Mas a pandemia riu na cara das nossas resoluções...
Na verdade, os dias não são bem iguais: cada vez mais a raiva toma o lugar do medo. Lavar a roupa, os cabelos todo dia já não precisa mais, muito menos as compras. Chega de fazer tudo de carona, eu preciso andar. Afinal, a cada dia está mais claro que o risco maior é no contato, pelas vias aéreas, e não tanto nas superfícies. Então, eu relaxei. Mas os velhinhos tomando sua cerveja na calçada, as crianças levadas à pracinha, os vizinhos que dão festa relaxaram a um nível temerário. Por que precisamos estar no mesmo barco? Às vezes dá vontade de me lançar ao mar.
Meus dias de folga são tomados pela contemplação das coisas simples: poderia passar toda a semana observando meus gatos, minhas plantas, o movimento do sol pelas janelas. Possivelmente isso também não seja verdade, mas já que não vai rolar, vou dizer que poderia sim, só para enticar com quem reclama da rotina caseira. Estamos afastados, mas ao mesmo tempo tão cientes de como todos estão encarando este período. Nas redes sociais, ao menos, a gente sabe quem é quem, seja pela foto ou pelo nome estampado como num crachá. Já na vida real, cada ida ao mercado, o evento social mor, é um eterno encarar-se sem saber se aqueles olhos pertencem mesmo àquela pessoa... Para uma míope, é exaustivo. Crachás, por favor!
Achei que ia ler muito nas minhas tardes no café, esperando pelos pedidos de delivery resolverem apitar. Lá por abril, devorei uns quatro livros em poucos dias. Amaldiçoei a Ufrgs por não me permitir essas leituras contemplativas entre tantas e tantas obrigatórias. Desde lá, devo ter lido um e meio. Um livro eternamente pela metade, pois a ansiedade não permite concentração suficiente para terminar. É a analogia perfeita: o livro pela metade é como a vida pela metade que estamos levando. E cada “volta à normalidade” apenas acrescenta mais temores, então melhor não terminar o livro. Deixa em suspenso, enquanto espera que todo mundo resolva ficar em casa. Quando passar, eu termino.
Ótima reflexão. Também não consigo ler nada, não tenho foco diante da ansiedade.
ResponderExcluir