Como manter a sanidade mental neste momento tão crítico de nossas vidas: afunde-se num cinismo confortável e inflexível, ele será a base da sua segurança. Aliene-se com o máximo de mídias possíveis, memes de internet, séries intermináveis. Ah, foda-se. Esse raciocínio não vai me levar a lugar nenhum. Eu só queria escrever aqui algo que não fosse sobre mim mesma, porque até onde eu sei, as morning pages deveriam ser sobre criação. Eu não crio nada há semanas. Ontem à noite chorei de novo. Não, nenhuma nobreza. A inveja pura e simples, (trecho suprimido). Eu só consigo lembrar do conceito de artista sombra do livro, em que um artista reprimido faz sua arte pelas beiradas, acaba trabalhando com algo parecido com aquilo que realmente quer por medo de encarar a própria missão de frente. Pensei nos grandes artistas das gerações passadas, o que seria de nós se eles tivessem se rendido a esse medo. E em quais são os desafios da nossa época. Viver encurralado por distrações de todo o tipo. Em um nível tão invasivo que é impossível conseguir pensar, pensar com clareza e tirar algum texto do meio disso. Minhas lágrimas ontem foram o resultado do desespero, de pensar que depois de uma semana a (trecho suprimido) não me respondeu ainda, eu tenho que me concentrar no que realmente importa, no ato de coragem que é olhar para si mesmo e pensar, e na coragem maior ainda que envolve persistir nesse pensamento e botar a vaidade a prova todos os dias, tentando achar por cima do texto medíocre a versão melhor dele mesmo. Eu sei que a cada trabalho literário vou assumir uma proposta mais difícil, mas sinto que essa barreira inicial de (trecho suprimido), sendo ultrapassada, vai ser um pouco mais fácil. E se eu comer coisas saudáveis, definitivamente isso vai afetar meu humor e a minha criatividade.
Talvez outra razão para o meu choro seja a mulher que vi ontem no supermercado. Eu tenho ido ao mercado para procrastinar. Não que eu coloque a máscara, calçado, roupas decentes e passe alcool gel só para ir procrastinar, eu tenho internet em casa, pelo amor de Deus. Mas uma vez que estou lá, eu procrastino bastante. Posso ficar horas decidindo uma marca de amaciante. Eu costumava fazer isso em catálogos de roupas livros e maquiagens na internet, mas agora que estou com menos dinheiro, faço no supermercado. Nunca faço listas de compras, isso aceleraria o processo. Nesses momentos, torna-se muito importante escolher a marca correta de pasta de amendoim (eu nunca tinha comprado pasta de amendoim antes). Não pode ter açucar sacarose, mas também não pode ser desprovida de gosto, essa, será? Essa. O que mais eu tinha que comprar? Ah, giz de cera. Ontem senti do nada o cheiro de giz de cera, um cheiro da minha infância, achei muito proustiano, e estou decidida a voltar a desenhar, então...Espera, deixa eu dar uma olhada nos salgadinhos antes, já estou levando várias coisas saudáveis, então não vai ser problema se eu levar um salgadinho, depois que eu estiver mais acostumada a fazer chips de batata doce eu largo de vez os salgadinhos industrializados, se bem que a batata doce já está apodrecendo na geladeira...Pringles. Eu comeria todos os dias se não fossem tão caros. Eu amo esse salgadinho, me sinto mal porque esse amor profundo está diretamente relacionado ao desenvolvimento de diversos tipos de câncer, e pela patética embalagem que vai para o meio ambiente junto com a tristeza do fim do pote. Mas eu poderia comer uma pilha dessas delícias que subisse até a lua. E ainda por cima, tinha uma promoção, se eu levasse o salgadinho, uma coca de 2l sairia por três reais. Eu não bebo muito refrigerante, mas com o salgadinho vai bem e...
Bem perto de mim, uma velha passou empurrando o seu carrinho. Passou não, mais correto seria dizer que se arrastava, mal empurrando com o corpo os calçados que parecia uma pantufa com um solado mais grosso. Vestia um calção que descia até os joelhos e um casaco puído. Os cabelos brancos e ralos iam até logo abaixo das orelhas. Voltei para as suas canelas, cheias de varizes, algumas saltadas faziam uma protuberância tão grande que parecia que uma árvore estava crescendo ali. Me perguntei quanto tempo de vida ela ainda teria, se o corona vírus não a levasse ainda esse ano. Enquanto pensei tudo isso, ela ainda não tinha saído do corredor. A musiquinha plácida do supermercado e o brilho do chão lustrado faziam um contraste interessante com aquela senhorinha vestida em trapos que empurrava o seu carrinho, uma perna depois da outra. Senti-me mal por pensar isso, ela tem uma vida, prazeres, ambições, por certo. O estado deplorável de suas roupas significava que não se importava com a aparência? Claro que não. Mas talvez ela não se importasse mesmo. Ela tinha um refrigerante em seu carrinho. Fiquei imaginando ela em casa fazendo força para abrir o refrigerante e fiquei com pena. Aposto que ela me odiaria se soubesse o que eu estava pensando. Ou não. Quando ela finalmente saiu do corredor, fiquei sozinha com o pote de Pringles na mão. Botei ele de volta na prateleira e fui para o caixa. Num caixa próximo ao que eu escolhi, lá estava ela. Eu não podia ver seu rosto por causa da máscara, lógico. Seus olhos tinham um aspecto enevoado, eu acho que ela nem conseguia ver direito o que estava comprando. Pensei sobre o que eu tinha acabado de fazer. Como se não comer a porcaria do salgadinho fosse me impedir de ficar como ela. Você só quer procrastinar em paz no mercado e a morte te aparece. Mas morrer pode ser um alívio em diversas situações, pensei. Isso não é um louvor do suicídio, eu só imaginei como seria não ter que estar sempre escolhendo alguma coisa, desejando alguma coisa, perseguir aquilo até conseguir e depois começar tudo de novo. A velha ainda tem que levantar todos os dias, lavar as suas roupas, ver essas roupas se desintegrando ao longo dos anos junto com ela e ir até o supermercado, ser julgada por uma fedelha, depois voltar até a sua casa e finalmente ter o prazer fugaz e corrosivo de beber o seu refrigerante. E isso ainda é um dos melhores cenários possíveis para envelhecer. Eu já li aquele texto do David Foster Wallace sobre ter atenção no supermercado, aliás. Também acho que a solução para esse impasse da vida é prestar atenção nos detalhes, e ali estava eu, prestando atenção nos detalhes e tendo uma crise existencial na frente da caixa do supermercado. Pedi para a moça esperar um pouco. A velha ainda estava passando os seus produtos no caixa. Me aproximei, peguei uma coca que estava no mini freezer e voltei para o meu caixa. O que isso quer dizer? Não faço a mínima ideia.
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