Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

10.8.20

Dia 146: por Maria Petrucci

Sobre perder, ganhar e etc. 

Semana passada recebi, por e-mail, uma intimação de um escritório de advocacia de Paris. Aparentemente, eu não cancelei da forma devida a minha inscrição na academia e agora tenho uma dívida de oitenta euros, vinte para cada mês não pago. É a coisa mais excitante que me aconteceu em mais de 100 dias de quarentena: estou devendo dinheiro, a justiça está à minha procura. Os advogados ameaçavam, caso eu não oferecesse resposta em 48 horas, congelar a minha conta bancária, apreender meu veículo, confiscar meu imóvel, coisas que ou já não tenho, ou nunca tive. Primeiro fiquei apavorada; depois, ao ter notícias do gerente da academia (um homem imenso chamado Nicolas, de quem me lembro muito bem apesar de não o ter visto mais do que cinco vezes porque sempre o detestei) e descobrir que o imbróglio era de resolução rápida, embora dolorida — como arrancar um band-aid que por acaso custou oitenta euros —, acabei achando engraçado. 

Achei engraçado falhar tão miseravelmente no início da vida adulta, primeiro por ter me inscrito em uma academia, sabendo perfeitamente que adultos que trabalham quarenta horas por semana não vão à academia, e segundo por não ter me desinscrito ou tê-lo feito errado, por ter assinado um contrato sem lê-lo, por ter presumido que o contrato terminaria uma vez terminado o plano semestral no qual me matriculei, por ter confiado que, se não te dizem alguma coisa sobre o contrato, é porque não é preciso sabê-la, quando é justamente o contrário, é fundamental saber o que não te dizem, haja ou não um contrato. Achei engraçado existir em dois lugares ao mesmo tempo, ser eu mesma aqui no Brasil — meu eu triste e desapontado, cujo retorno à terra natal é amargo e solitário, e não festivo e eufórico, como eu pretendia ou imaginava no início de março, que além de não se divertir no presente gasta suas poucas economias em delitos do passado — e eu antiga ou eu pregressa na França, meu eu vibrante e aventureiro, ainda infantil malgrado os inúmeros encargos aos quais as circunstâncias me forçavam, que experimentava com gosto o erro e de quem eu jurava ter me livrado quando entreguei a chave do apartamento e fechei a conta no banco. Achei engraçado perder oitenta euros — um dinheiro absurdo em solo brasileiro, que vai me doer no bolso e poderia, aliás, ser usado para inúmeras benesses (três cursos de extensão, quatro idas ao supermercado, uma cesta básica, uma passagem de avião, cinco ou seis livros) — como se perde um sinal aberto, uma chance, ou então um brinco, uma fita, algo pequeno e substituível. Achei engraçado ser como sou ou ser isto em que me transformei: ridícula e despreparada, ou então mimada e frívola e negligente, mas também tolerante, desprendida, despreocupada; alguém que leva bastante a sério o dinheiro, pensa constantemente em dinheiro e nas maneiras de melhor reparti-lo, que pode, inclusive, passar tardes estudando-o em sua esquizofrenia capitalista para defender a taxação das grandes fortunas e o fim do imposto regressivo, e no entanto não sabe usá-lo, nem guardá-lo nem muito menos aplicá-lo ou multiplicá-lo. Ao contrário, ri sem vergonha porque jogou oitenta euros pelo ralo, porque deve oitenta euros que mal tem para uma academia francesa que mal frequentou. 

Pensar em mim mesma há alguns meses como outra pessoa — não tanto como um fantasma ou espectro quanto um clone, ou uma gêmea por bipartição, alguém que fabriquei e que portanto persiste e continua em sua temporalidade remota, congelada, ela sim feliz, à qual já não tenho acesso senão em memórias que mais parecem capítulos de uma novela — dá-me uma sensação de escape imerecido da quarentena, oferecendo-me um vislumbre de outra linha do tempo, de uma realidade alternativa em que não me cansei, não tive medo e não voltei ao Brasil. Nela vou à praia em Marseille e leio as notícias com culpa, nela 100 mil mortos me envolvem como o susto de uma trovoada, menos sufocante do que esta redoma de vidro em que nos encontramos; nela posso ver ao longe o espírito do mundo, que tanto assustou Hegel e Kubrick, cavalgando por sobre o país, mas agora ele é Bolsonaro montado em uma ema, empunhando um pacote fechado de hidroxicloroquina. Mera fantasia, porque nenhum “talvez” cura, nenhum “se” ressuscita ou interrompe: são janelas que dão para o muro, medianeras frustradas e efêmeras. Na minha outra realidade não teria havido esforço internacional pelo cuidado irrestrito, uma união da sociedade civil pela reorganização das estruturas de assistência e proteção: haveria apenas mais grama para mim, e também meu tempo de errar haveria passado — nela tomo banho de mar e já não tomo gosto no erro, e ainda tenho oitenta euros. 

Pode ser que a graça, patética por natureza, venha desta incapacidade de resolver as coisas, desta insistência pueril em arrastar problemas como resquícios de um momento ao qual não se queria dar fim. Ou pode ser que venha da própria falha, de um certo alívio na falha, na derrota, uma súbita afiliação orgulhosa aos losers contra a tirania dos winners. Os vencedores, afinal, costumam passar por cima das pessoas, e o farão mesmo que sejam corpos, dez que viraram dez mil e hoje dez vezes dez mil; poderão escalá-los, ou apalpar sua carne desocupada, revirar bolsos e carteiras enquanto fecham os seus próprios, ou dar dicas no YouTube de como prosperar em meio à catástrofe. Os vencedores acham que vencerão a morte tal e qual vencem na vida, e que vencer é um ato individual e unívoco. 

Me agrada ser um fracasso este ano especificamente, quando nos pedem comprovações de sucesso como se fossem indícios da funcionalidade de um sistema macabro, ou da tenacidade da existência contra quaisquer adversidades, a “gripezinha” que já deixou 100 mil brasileiros falecidos inclusa. Me agrada não tocar adiante a vida, ou tocar uma vida suspensa, à espera de um pouco mais de vida para todo mundo. Gosto de repente de ser improdutiva e desimportante, e de entender que o que faço sem remuneração é ou está sendo maior do que o que faço com ela, o que faço com os outros ou pelos outros mais propulsante do que o que faço sozinha. Ninguém vencerá em 2020 — ninguém vence em uma guerra, se é a isso que chegamos —, mas experiências pretéritas ensinam-nos que os perdedores da sociedade têm mais talento para a partilha e a reconstrução, talvez porque carregam consigo o desapego necessário para olhar para o lado, para o que realmente está ao lado, “é” e “está” e “assim será” ou “poderá não ser”. Fracassados têm mais tempo para remendar e reerguer (e, espero eu, planejar pequenas revoluções), porque a temporalidade do sucesso é linear, caolha e autossuficiente. Se os winners acumulam ganhos com exclusividade enquanto tantos perdem muito, ou perdem tudo, ou perdem a vida, simplesmente, parece-me perfeitamente adequado ser uma loser

Desde semana passada ando pensando naquela frase de Beckett, acho que é “fracasse de novo, fracasse melhor”, à qual resolvo conferir uma interpretação literal: quando o objetivo é apenas vencer, realmente não se faz muita coisa. 


7 comentários:

  1. Texto pungente! Reflexão necessária!

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  2. Gostei muito de ler tua escrita, Maria! Excelente reflexão. Abraço

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  3. Sensacional esse texto! PARABÉNS Maria! Parabéns para os pais Ligia e Dudu😍😍

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  4. que coisa mais precisa e sensível, Maria!

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  5. Excelente texto! Meus parabéns, querida!

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  6. Adorei o texto Maria, reflexões intensas e carregadas de realidade. Parabéns e segue em frente ! Toia

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