Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

11.8.20

Dia 147: por Luiz Gonzaga Lopes

O TGV da vida

Quando certa manhã Luiz Gonzaga Lopes acordou de sonhos intranquilos, estava em sua cama metamorfoseado em um jornalista cultural com medo e ao mesmo tempo sem medo de contrair o vírus, AQUELE, o inominável, que tem ao final de seu nome fantasia o 19, se o DEZ é NOVE, é porque algo está muito errado. Sempre que acorda, LGL reza, não porque tenha fé cega, mas porque crê no rito, em falar com alguém que não é visível.

Acabo de lembrar que este é um diário da pandemia, que preciso descrever de forma documental ou ficcional um dia na vida de um jornalista cultural. Com um narrador onisciente em discurso indireto, terceira pessoa, eu não irei conseguir entregar o referido texto a contento para a exímia amiga das Letras, Julia Dantas, que, na época da presencialidade, me proporcionou alguns papos interessantes sobre literatura, cinema e vida.

Tergiversações à parte, o meu dia começa com uma oração. Uma frase também começa com uma oração, ora, ora. Respeitado o rito, começa a preparação para um dia na vida de um jornalista cultural e editor de caderno de Cultura na Porto Alegre que produz muita cultura, mas por vezes não a valoriza do modo como deveria. Muito café feito na moca, frutas (banana esmagada com aveia, confesso), pão, manteiga e queijo, um ou outro bolo ou omelete.

Um amigo do jornalismo cultural combinou uma live comigo pelo Instagram às 9h da manhã. Horário diferenciado. Talvez tenhamos mais de 100 pessoas ao vivo. Ele me chama pelo Insta, eu atendo e posiciono meu celular de modo horizontal, pois tudo que é feito na horizontal é mais gostoso. O papo começa solto e em alguns momentos, ele pergunta pelo meu início no jornalismo e depois em editorias de Cultura. Digo que a primeira experiência profissional em jornalismo foi numa rádio como produtor e redator de editoriais dos programas da manhã e que o meu início no jornalismo cultural foi numa revista semanal nesta mesma cidade. A conversa que deve durar 1 hora avança para os desafios de um editor de Cultura neste momento de pandemia. Explico que as lives e a produção de conteúdo exclusivo do meu veículo de comunicação são a solução, bem como a busca de material exclusivo, ainda não abordado por outros colegas. Nas perguntas pessoais, os amores, as viagens, os encontros e desencontros e a vida de escritor diletante, com um romance e uma biografia publicados e alguns contos publicados em duas antologias e revistas. E por aí vai. Nos despedimos com a guilhotina do Instagram e eu sigo para dar a primeira visualização de e-mails do dia. Minha caixa chega a ter mais de 5 mil e-mails, dos quais uns 500 ainda não lidos. Pessoas oferecendo artigos para o suplemento de final de semana, outras oferecendo pautas que parecem ser a oitava maravilha cultural do mundo, ainda outras fazendo contato via e-mail ou whatsapp, ansiosas pela publicação de algo ou oferecendo entrevistas. 

No meio disto tudo, eu faço a produção das lives diárias para o jornal, nas quais entrevisto músicos e por vezes gente da literatura, teatro ou artes visuais. Ainda antes do final da manhã, termino a leitura dos principais jornais do dia e sites com notícias da área e preparo as reuniões da tarde com a equipe da editoria e com os demais editores, tudo via Skype. O almoço é rápido. Algo pedido na esquina ou feito às pressas, arroz, bife e salada; massa bolonhesa; arroz, batata e espinafre, com um suco de laranja feito na hora.

A tarde é pura gincana. Fico pensando que logo que começou a pandemia, eu tive a certeza de que ia ler todos os livros clássicos que ainda não li, ver e rever os filmes russos, iranianos, chineses, finlandeses e espanhóis tão sonhado. O velocíssimo TGV da vida ordinária e focada no trabalho avançou sobre mim e eu fiquei amarrado nos trilhos esperando-o passar por cima. Resiliente. Este sou eu. A divisão das pautas do dia, a edição das páginas do jornal. Uns dias são três, em outros são oito ou dez, fora o cadastrar de matérias no site, a produção de conteúdos exclusivos. O café é velho companheiro, adrenalina natural e adoçado com sacarose.

Muitos telefonemas, cinquenta conversas verdinhas no Whatsapp. Eu sou um visualizador nato, mas pior que respondo tudinho, mesmo que para dizer que estou ocupado. Chega a hora da live. Uma entrevista prazerosa com um músico ou um escritor. Falamos de livros que lemos, discos que ouvimos, coisas que gostamos. A pessoa do outro lado do Skype, Zoom, Google Meets passa a ser minha nova amiga de infância depois de uma hora de conversa. Este é o belo da vida das lives, das lives vividas, das ávidas lives, leave my life in peace. Peça de um quebra-cabeça que me extenua a cada dia.

Acaba a live e eu termino de fechar a edição do próximo dia. Por um momento, esqueço onde eu estou e quem sou. Não respondo às mensagens. Rezo novamente e ligo a TV numa série favorita qualquer. A de hoje é a Atwoodica, “The Handmaid´s Tale”. Torço pelas mulheres onde quer que elas estejam, seja qual for a luta. Ativo o meu ativismo, mas ainda não lembro quem sou. Quando caio em mim, estou escrevendo um Diário de Pandemia para a minha amiga Julia Dantas, escritora do magnífico Ruína Y Leveza. Por instantes, me vem à cena daquele deslizamento na Bolívia e de toda a alma contida naquele livro, mas não há mais tempo para nada. O tempo, este tirano implacável, me sussurra algo como: “está na hora de acabar este texto mesmo que não tenha ficado grande coisa”. Como um cara atropelado pelo TGV da vida pandêmica, eu simplesmente assinto com a cabeça e penso em colocar um ponto final no fim desta frase.

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