Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

12.8.20

Dia 148: por Daniel Ricci Araújo

Dentro de um terno bem cortado, a âncora  televisiva anuncia que o Brasil passou pelo pântano das cem mil mortes por Covid-19. Desligo a televisão, coloco uma bermuda, uma camiseta e saco a chave do carro da mesinha da sala. Na descida das escadas do condomínio, noto que os "boa tarde como vai" da vizinhança brotam de um ponto mais fundo do peito por esses dias, o novo normal em que máscaras de pano são vendidas a granel no Mercado Livre.

Entro no carro e dou a partida. Saio pelo portão e tomo a rua, desvio da placa-advertência obras a 300 metros, subo o viaduto central e entro à direita rumo a Porto Alegre. Perto da Estação Niterói, uma faixa grudada na passarela informa que a revolução popular só será realidade quando forem alcançadas umas determinadas condições. Do outro lado, um pequeno monumento com o nome de Canoas anuncia à frente o Rio Gravataí. Tomo a alça da free-way, e a máscara branca de pano no rosto é a base do pequeno protocolo Daniel de passeio motorizado para sair de casa após cinco dias. Passo à frente da Arena e lembro que as caravanas para chegar ao Olímpico tinham uma cor diferente desse amplo cinza que se anuncia nos braços de polvo da nova ponte do Guaíba. Vinham os grupos de fedelhos metidos a barrabravas pela extensão das ruazinhas estreitas da Azenha, o bairro de pé-direito baixo com suas agências bancárias, lojas de estofados e autopeças. Algum senhorzinho de camisa do Grêmio, da distância de uma sacada, podia dizer como é que vai o fedor destes vossos orifícios e nós então respondíamos tão ou mais cheirosos que o Vosso, meu senhor. Uma vez um amigo comeu tanto em um restaurante da Vicente da Fontoura que não conseguiu completar a grande marcha cívica rumo ao Portão 16 (era o 16? ou o 23?), que se acessava pela Avenida Carlos Barbosa. As coisas que mudaram: já temos idade para notá-las. Em mil novecentos e noventa e sete tudo parecia para sempre. 

Contorno o zigue-zague da entrada da Rodoviária. Na entrada do Túnel da Conceição, a terceira marcha aumenta de leve o giro do motor. Lembro por alguma razão do cinema, já não me recordo como algumas coisas funcionavam antes disso tudo. Imagino o Retrato de uma jovem em chamas na tela grande, a última cena, o grande amor interditado invadindo a sala como uma labareda inflamável. Ontem à noite vi pela terceira vez (terceira?) Um sonho de Liberdade. A esperança, sempre ela. “Andy Dufresne, que nadou por um rio de merda e saiu limpo do outro lado”. Um carroceiro está à minha direita. Parece juntar latas e tudo que tenha algum valor. 

O carro faz a sua volta pessoal e intransferível. Alcança a Padre Cacique, namora a face direita do Beira-Rio. Eu estico a quinta marcha até a frente do Barra Shopping e suas já antigas doze salas de cinema com combo pipoca salgada e de chocolate meio a meio por cinquenta e dois, eu repito, cinquenta e dois reais. Faço a volta. Dedico o devido respeito à lombada eletrônica da mão oposta da avenida e venho embora pela frente do TRT. O Largo da Epatur abriga pessoas caminhando, e me ocorre que aquela casquinha de Cidade Baixa deve ser majoritariamente progressista, atenta às questões da saúde pública e da vida humana em geral. Só vejo gente de máscara. Fantasio cirurgiões plásticos, donos de franquias com ênfase em trabalho colaborativo e malucos de todas as ordens pedindo frascos de cloroquina nas farmácias da Padre Chagas ou da Nilo Peçanha. O colunista do noticiário televisivo, um homem muito branco e muito aprumado, detectou dia desses uma grande divisão entre o povo brasileiro. Eu só vejo os vivos e os mortos. 

Volto para Canoas pela BR-116. Os automóveis estão buzinando, dando setas agressivas ou parados nos postos de gasolina. Já no entorno do meu prédio, estaciono na vaga livre do supermercado próximo (menor que um Zaffari, maior do que uma mercearia). Um homem sem camisa e sem máscara está sentado. Estende a mão e não diz nada. Na porta, o termômetro informa a regularidade dos meus trinta e sete graus celsius de temperatura corporal. Pego refrigerante, pão, queijo e um pé de brócolis (os brócolis têm pé?). Agarro um sanduíche e uma coca-cola seiscentos mililitros. No caixa, vou ajudando a embalar as coisas, os funcionários do supermercado estão sobrecarregados (menor que um Zaffari, maior do que uma mercearia). Coloco o sanduíche e a coca-cola em um saco menor e dou um nó. Volto pela calçada. O homem não está mais lá. Guardo tudo no porta-malas e volto para casa.

Subo as escadas de volta. O barulhinho do whatsapp informa a chegada de mais um Inquérito Policial digitalizado. Eu e minha colega somos unânimes na constatação: aumentaram os feminicídios e suas tentativas. Abro a porta e me organizo: à geladeira o que é de geladeira, ao armário o que é de armário. Digito no teclado do computador uma minuta de pedido direcionado ao Excelentíssimo Juízo Criminal. 

Da janela da sala vejo uma criança brincando com um graveto do outro lado da rua. Ainda há um fiapo de sol, persistente, desobediente, que não respeita o novo normal

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