Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

31.8.20

Dia 167: por Rodrigo Bittencourt

Os sebos estão abertos, e esse meu novo hábito vem em boa hora. Serviço essencial mesmo.  

Eram quase dez horas, mas ainda não dez em ponto, e por isso eu decidi ir no super matar o tempo, comprar umas coisas que tinham faltado. No caminho descobri uma feira, mas não comprei nada, mal passei perto das bancas. Achei que era exposição demais pedir uma granola num lugar que não conheço. 

Cheguei no super, peguei um quilo de granola, papel-toalha, manjericão e um chocolate 70%. Antes de pagar, liguei pro sebo. Estava aberto. Fiz um caminho mais longo na volta a fim de passar de novo por lá. Fui entrando quando cheguei, mas a atendente, uma loira com olhos bem claros – cabelo e olho é tudo o que se vê hoje em dia –, veio meio agressiva dizendo que só podia entrar um cliente por vez. Tinha só um cara lá. No dia anterior, eram três ou quatro ali dentro. Saí meio ofendido segurando aquelas sacolas do super e esperei com uma velhinha olhando a vitrine. O cliente demorou um pouco a sair. 

A mesma mulher tinha me atendido no dia anterior. Quando entrei hoje, falei como se ela fosse me reconhecer. Disse “Tudo bem? Chegou aquela encomenda?”, mas ela ficou confusa, perguntou se era ela quem tinha me atendido. Falei que sim, dei o nome do livro, e ela disse que tinha chegado. Menos de 8,50 com o desconto. Aproveitei e dei uma olhada nas prateleiras. Demorei um pouco até achar algo interessante, mas por fim peguei a História do olho e levei até o balcão. “Esse tá 89,90”, ela disse, e eu sorri por trás da máscara. Ela repetiu o número pra ela mesma, incrédula. “Vai ser só o outro, então”, eu falei. 

Na volta pra casa passei por uma livraria. Recém abriam a cortina de ferro. Perguntei se tinham a História do olho porque queria comparar o preço, e o atendente disse que estava 49,90, mas só por encomenda. Me perguntei se não teriam registrado errado o preço da outra loja.  

Passando o balcão e outra atendente, a loja tinha um sebo grande, mas tudo caro, mal conservado. Fiquei um tempo olhando as lombadas e os preços enquanto os donos atendiam pedidos de livros no computador. 

“O cara quer outro do Dawkins falando que Deus não existe”, o atendente disse pra colega. 

“É que no Deus, um delírio ele só refuta a religião.” 

“Mas fala de Deus também, tá bem explícito no título.” 

“Sim, mas tu já leu? Ele fala que religião é o mal. Eu concordo.” 

“Escuta”, ele pareceu tentar controlar alguma irritação, “religião é um negócio ambíguo. Não dá pra descartar assim.” 

“Mas e o fanatismo, a hipocrisia?” 

A essa altura eu tinha tirado e devolvido vários livros da prateleira e vinha ficando nervoso porque eram todos caros e eu já estava ali há um tempo. Ia ter que comprar alguma coisa. Encontrei um Triângulo das águas por vinte reais, dei uma folheada e levei até o balcão. A conversa continuava. 

“Olha, tu vai me desculpar, mas esse é um assunto no qual tu é ignorante.” Ele pegou o livro que entreguei, olhou a última página. “Vinte reais. Tu não sabe nada sobre perdão. É uma coisa matemática. Tu pega um cara que matou alguém, introduz religião, e o cara se arrepende pra vida inteira. Cadê a hipocrisia?”

A mulher não respondeu. Dei uma nota de cinquenta ao atendente, e ele perguntou se eu não tinha trocado ou cartão de débito. Passei no cartão. Voltei pra casa com os dois livros e as sacolas do super. Uma hora dessas tenho que ver se as igrejas seguem fechadas.

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