Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

12.9.20

Dia 179: por Marília Teixeira

Feliz ano novo

Hoje eu acordei cansada. Tem vezes que nessa rotina eu vou direto para a janela. Respiro aquele ar frio, que tem outro peso e falo bom dia. Porque não falarei mais nenhuma palavra até as onze. Minha visão da cidade é considerável, mas esse ritual às vezes vira o ponto limite onde posso chegar.

Dias assim eu me sinto ingrata. Eu já vi alguém morrer. De mês em mês. Era alguém que eu não gostava muito, levava livros ou qualquer coisa para me distrair. Até andei de patins pelo apartamento uma vez. E me perguntava sempre se um dia ia me arrepender disso, que se houvesse de fato um julgamento eu seria a pior pessoa por odiar alguém que morria. Ele pegava na minha mão sempre e me olhava no olho para dar tchau. Se fosse hoje, eu ia sair sempre chorando. Lá atrás, não.

Tem vezes que nesses dias me veem outra memória de morte. Ela já era mais velha e eu realmente gostava dela. Conversava comigo quando andava de balanço, sempre no lado de fora de casa. Há tempos tava doente, não fazia sentido resistir. A incapacidade que se sente quando se precisa de alguém para te trocar as fraldas é quando se morre. O corpo demora em acompanhar. Ela pegava na minha mão forte apesar de eu ser uma estranha que ela nunca de fato conheceu. 

Então eu me sinto ingrata. Ingrata por me sentir feliz quando sou produtiva nesses meses dentro de casa. Culpada por voltar para a rua em duas semanas se tem alguém que perdeu todas as três irmãs no hospital. Ingrata por pensar que as pessoas precisam se despedir assim, em menos de um mês. Resfriado só. Resfriado que minha mãe teme todos os dias estar trazendo para casa por trabalhar no posto de saúde. Aí me sinto com os pés sondados no chão. Preciso ser forte como ela é.

Ao mesmo tempo, tem vezes que nesses dias eu sinto vontade de rever fotos. 

Era a virada da madrugada do meu aniversário. Véspera de natal. Geralmente no meu aniversário não tenho uma memória muito forte, não sou muito feliz. Dois anos atrás eu tive uma companhia que saiu comigo por aí, fotografando, correndo, bebendo, dançando e tropeçando em caracóis. Já que eu olhava para cima, para a lua redonda. E nunca tinha me sentido tão eu, tão pertencente a um só lugar. 

O ano novo foi tão bom quanto. Depois da meia noite subimos eu, meu primo e minha irmã nas pedras bebendo champagne, a lua revisitando na mesma fase. Consegui ver os fogos. Sentamos num banco, no meio do campo, ouvindo música. Senti que vinha muita coisa pela frente e que estava pronta. Que eu era eu, e vivia no meu casulo. Não sabia a que agradecer tanta segurança. Amadureceria muito com aqueles sentimentos de combustível. Tinha feito o discurso de formatura. Tinha me apaixonado. 

E de fato foi um baita ano, o seguinte. Me envolvi com a mesma pessoa, agora desapaixonada. Conheci outras, fiz jogadas de basquete como se soubesse o que fazia e fiquei eufórica com uma torcida. Não me sentia tão ansiosa quanto antes, estudei mais tranquila. Todas as manhãs, sentava no mesmo lugar. Olhava para a torre da igreja naquele tempo lento, cinza, com minhas amigas sempre sentadas no meu lado. Cada prova que entregava eu estava sendo sincera a mim mesma e meu futuro. Aprendi a depender só de mim, a pessoa que ia continuar até o final comigo.

O ano seguinte teve outra promessa. Não me sinto mal de estar em casa e estranhamente não tenho ansiedade nem estresse porque sei que estou fazendo o certo depois de tanto tempo... Mas depende mais do resto do que de mim. Tive sorte de ter vivido minha vida como foi e como está sendo. Tem dias mesmo que não dá vontade de continuar tentando estudar. Perde o sentido. Tu vê cada professor e aluno que também não acredita. 

Não tenho um tom otimista para terminar. Apenas um lembrete de que nada permanece.

Se vivem memórias, pessoas vivas, mil possibilidades que são só jogadas no acaso e se encaixam, de modo tão aleatório que às vezes dá certo.

Na mesma vida que se morre, se vive.

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