Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

22.9.20

Dia 189: por Altino Mayrink

Um dia como todos

Uns seis meses de distanciamento, dos amigos, dos colegas, dos amores, de todos os contares e cantares nos cafés e nos bares de Porto Alegre e da vida. Sem viagens, sem viragens, miragens, nasceres e pores de sol. A repetição de movimento nos limitados cômodos da casa de adulto solitário, só.

Esse é o hoje, indiferente do ontem e já não sei como será o quando vier.

Olho em volta a desarrumação comportadinha em que se transformou o apartamento dessa vida. As estantes de livros, com muitos livros e mais. A televisão que não ligo. As almofadas do sofá que sentem saudade de serem apertadas e afofadas por mãos carinhosas das minhas visitas. Um tabuleiro e peças de xadrez que vão se multiplicando em muitas partidas, sendo jogadas à distância. Já viram impactantes vitórias, melancólicos empates e vergonhosas derrotas. E os relógios das paredes e estantes, com as apresentações sem parada do tempo e seus tique-taques desarmônicos.

Em momento algum da minha vida de constantes mudanças fui tão eu. Nem tão silencioso, nem tão pensante. Estudei e aprendi. Ensinei e vivi em janelas irreais do notebook negro. Sentenciei minhas realizações e esconjurei todas as deidades possíveis. As graças que recebi e as descrenças que porventura tive povoaram meus muitos e silenciosos pensamentos. Se algo pude dizer ao mundo e a vida, foi pensado e remoído de antemão. Fui e estou mais sábio, mais sereno e mais moderado.

As comidas que aprendi a fazer e que agora são parte de mim. As bebidas, bem mais escolhidas e saboreadas com parcimônia. Redescobrir os fornecedores que nunca tinha conhecido e reconhecido, de insumos mais saudáveis e menos industrializados. Como e bebo melhor. Meu legado.

Queria ter palavras doces e amigas para terminar esse relato, mas não posso. Se o que eu vejo pela janela não me mostra que as pessoas progrediram, se meus vários vizinhos de prédio e de rua insistem em não ver e negar insistentemente as precauções, não posso. Deixo apenas o recado esperançoso de alguém que aprendeu com as atribulações dessa época: se houver um futuro, para mim bom será. Mas não vejo a cidade, o estado ou o país melhor para todos nós.

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