Eu comecei bem a
quarentena. Apesar da incerteza dos primeiros dias, os que se seguiram
pareceram uma oportunidade boa demais para não agarrar com unhas e dentes:
estar em casa trouxe possibilidades que, até então, eu não tinha. Cozinhar, desenhar,
escrever, cuidar de mim. A rotina exigia uma rotina mais rígida, estar em casa
flexibilizou tudo. Eu busquei acompanhar as notícias, assistir aos jornais,
assimilar cada número como uma vida e não deixar de vê-las com a singularidade que
lhes caracteriza. Em paralelo, entretanto, eu produzia. Comecei dois cursos nas
minhas áreas de estudos, cursos longos. Passei a fazer aulas de desenho.
Adicionei uma faculdade a este mix, para aproveitar ao máximo esta nova
disponibilidade. Terminei de escrever o meu primeiro livro, e tirei da gaveta
muitas das minhas várias ideias estacionadas. Dei andamento a alguns projetos,
especialmente aqueles que já não visitava há tempos. Costurei alguns desejos e
passei a pensá-los de forma mais concreta. Aprendi receitas variadas e cozinhei
o meu almoço, no horário de intervalo do trabalho, para ter o prazer de comer
comidinha feita na hora. Decidi me ver, tirar um tempo para entender quem sou e
visualizar o espaço para o qual estou me encaminhando. Retomei cuidados com a
saúde, para atingir o tão sonhado estado de bem-estar do corpo. Eu não teria
tirado tempo do essencial da minha rotina para fazer qualquer uma dessas coisas
antes. Eu sei que esses desejos habitam o cantinho escondido da minha cabeça há
tempos, cutucando vez que outra, para ver se eu tomo a iniciativa de deixá-los
livres. O isolamento libertou-os todos. Essas vontades estão dividindo comigo
este momento. E tem sido bom, tem sido construtivo. Por me olhar tão pouco na
mecanicidade do dia-a-dia, eu tinha dificuldade em saber o que acho de mim, o
que acho do que faço, o que precisa melhorar dentro disso que me constitui.
Muitas das respostas estão claras agora, porque a lista existe e está em
andamento, o que é mais do que jamais esteve.
O problema reside do lado
de fora desta bolha, porque do lado de fora tem gente morrendo. Do lado de
fora, enfrentamos desarmados dois inimigos letais – e tem sido difícil projetar
quem vai ser o responsável por matar mais. Do lado de fora, as pessoas estão
perdendo a perspectiva. Do lado de fora, as pessoas estão desesperadas. Dentro
da minha bolha, correndo comigo e contra mim, ao mesmo tempo, eu reservava à
realidade apenas o momento inicial dos meus dias quando o distanciamento social
começou. Agora, os dias passam tomados por ela. A motivação foi contaminada. A
vida real pesa e as palavras parecem carecer de força para deter o esmagamento.
Por ter pensado tanto na posição que ocupo enquanto ser humano, corrói a mim
perceber outros seres humanos caindo em valas por irresponsabilidade. Dói
perceber quem morre e porque morre – e que ninguém tem dificuldades em entender
o público alvo da morte, porque o país em que vivemos nunca deixou tão clara a
desigualdade, e sua intenção em agravá-la. Indigna saber que a violência
aumentou em casa e que as pessoas sofrem impotentes, sem poder encontrar
conforto no local que deveria ser porto seguro. Sinto estarmos todos caminhando
em direção ao momento do pesadelo em que desejamos, afobados, abrir os olhos
para deixar o cenário de brutalidade e retornar ao quente da cama, ao conhecido
do espaço; os olhos já estão abertos e a realidade permanece cruel e teimosa a
distribuir monstruosidades.
Contagem
Regressiva
Chegou sem vestes vestidas
Andou em vestes puídas
Buscou sob olhares de escárnio,
abandonado rebento
em tentativas,
pouca vida
em postulados,
vívido excesso
em vigílias,
sujeito a
breves sinas,
perdido
em rotinas de anedota.
abandonado rebento
em tentativas,
pouca vida
em postulados,
vívido excesso
em vigílias,
sujeito a
breves sinas,
perdido
em rotinas de anedota.
Debateu múltiplas saídas
Permaneceu em rotas retorcidas
E, então, morreu, sem entender nada.
Escrevi este poema há
alguns semestres. Foi uma provocação da faculdade. Há coisas de que desgosto
profundamente, mas por ter sido escrito no início do curso, compreendo o
processo como parte do meu aprendizado e mantenho-o assim. Já até tentei
ajeitá-lo, e talvez o faça um dia, mas ele comunica exatamente o que eu sinto,
com palavras que não são as minhas de agora, e por isso parecem estabelecer
diálogo: a eu que fui deixando marcas para a eu que sou. Tenho retornado muito
a ele ao longo das últimas semanas. Acredito na morte do autor, e considerei
desconsiderar este pedaço do parágrafo, mas escrevê-lo faz parte de assimilar
este todo que nos foi dado. Somos todos ou os muitos rebentos abandonados, ou a
plateia que os acompanha e, se antes morreriam sem entender nada, agora o fazem
privando entendimento a qualquer um. Não entendem os que perecem nem os que
permanecem. Os poucos que se dizem esclarecidos atalham as rotas para o fim. Foi
o crime de permitir esta realidade que fez a experiência do isolamento ruir. Os
números sobem, os corpos empilham, e os gritos que representam ecoam, por todos
os lados. Por que tanta gente finge surdez?
São quase dois meses e o
horizonte reserva mais alguns. Sessenta dias de exílio ao avesso (como
sabiamente o chamou Willie) e não há como esperar apenas flores neste campo
minado. As paranoias e as culpas estão, de prontidão, cercando o meu espaço,
aproveitando mínimas oportunidades para consumir, sorrateiras, o otimismo.
Nestes tempos não têm sido difícil para elas, que vivem da exploração de
rachaduras. Sei de sua presença por manifestações que variam em magnitude, mas
deixam rastros de angústia e ansiedade. Eu devia ter aprendido que respirar
fundo é mais efetivo que exasperar frustrada, mas às vezes essa é a única saída
válida e abraçá-la também é conhecer-me mais.
Conforme escrevo estas palavras, lembro a mim da razão pela qual as componho e, então, retomo o meu ritmo de novo: entre os muitos altos e baixos, controles e descontroles, agarro-me à criação, às suas múltiplas possibilidades e à urgência em mantê-las, que é o que, desde que me conheço por gente, me mantém sã, alerta e determinada. Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobre e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Clarice sempre entendeu que é a escrita a maior afirmação que tenho e a maior justiça que conheço, portanto, deixo a ela o fim do meu relato.
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