Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

16.5.20

Dia 60: por Jéssica Ribeiro Daitx


Eu comecei bem a quarentena. Apesar da incerteza dos primeiros dias, os que se seguiram pareceram uma oportunidade boa demais para não agarrar com unhas e dentes: estar em casa trouxe possibilidades que, até então, eu não tinha. Cozinhar, desenhar, escrever, cuidar de mim. A rotina exigia uma rotina mais rígida, estar em casa flexibilizou tudo. Eu busquei acompanhar as notícias, assistir aos jornais, assimilar cada número como uma vida e não deixar de vê-las com a singularidade que lhes caracteriza. Em paralelo, entretanto, eu produzia. Comecei dois cursos nas minhas áreas de estudos, cursos longos. Passei a fazer aulas de desenho. Adicionei uma faculdade a este mix, para aproveitar ao máximo esta nova disponibilidade. Terminei de escrever o meu primeiro livro, e tirei da gaveta muitas das minhas várias ideias estacionadas. Dei andamento a alguns projetos, especialmente aqueles que já não visitava há tempos. Costurei alguns desejos e passei a pensá-los de forma mais concreta. Aprendi receitas variadas e cozinhei o meu almoço, no horário de intervalo do trabalho, para ter o prazer de comer comidinha feita na hora. Decidi me ver, tirar um tempo para entender quem sou e visualizar o espaço para o qual estou me encaminhando. Retomei cuidados com a saúde, para atingir o tão sonhado estado de bem-estar do corpo. Eu não teria tirado tempo do essencial da minha rotina para fazer qualquer uma dessas coisas antes. Eu sei que esses desejos habitam o cantinho escondido da minha cabeça há tempos, cutucando vez que outra, para ver se eu tomo a iniciativa de deixá-los livres. O isolamento libertou-os todos. Essas vontades estão dividindo comigo este momento. E tem sido bom, tem sido construtivo. Por me olhar tão pouco na mecanicidade do dia-a-dia, eu tinha dificuldade em saber o que acho de mim, o que acho do que faço, o que precisa melhorar dentro disso que me constitui. Muitas das respostas estão claras agora, porque a lista existe e está em andamento, o que é mais do que jamais esteve.

O problema reside do lado de fora desta bolha, porque do lado de fora tem gente morrendo. Do lado de fora, enfrentamos desarmados dois inimigos letais – e tem sido difícil projetar quem vai ser o responsável por matar mais. Do lado de fora, as pessoas estão perdendo a perspectiva. Do lado de fora, as pessoas estão desesperadas. Dentro da minha bolha, correndo comigo e contra mim, ao mesmo tempo, eu reservava à realidade apenas o momento inicial dos meus dias quando o distanciamento social começou. Agora, os dias passam tomados por ela. A motivação foi contaminada. A vida real pesa e as palavras parecem carecer de força para deter o esmagamento. Por ter pensado tanto na posição que ocupo enquanto ser humano, corrói a mim perceber outros seres humanos caindo em valas por irresponsabilidade. Dói perceber quem morre e porque morre – e que ninguém tem dificuldades em entender o público alvo da morte, porque o país em que vivemos nunca deixou tão clara a desigualdade, e sua intenção em agravá-la. Indigna saber que a violência aumentou em casa e que as pessoas sofrem impotentes, sem poder encontrar conforto no local que deveria ser porto seguro. Sinto estarmos todos caminhando em direção ao momento do pesadelo em que desejamos, afobados, abrir os olhos para deixar o cenário de brutalidade e retornar ao quente da cama, ao conhecido do espaço; os olhos já estão abertos e a realidade permanece cruel e teimosa a distribuir monstruosidades. 

Contagem Regressiva

Chegou sem vestes vestidas
Andou em vestes puídas
Buscou sob olhares de escárnio,

                        abandonado rebento
                        em tentativas,
                        pouca vida
                        em postulados,
                        vívido excesso
                        em vigílias,
                        sujeito a
                        breves sinas,
                        perdido
                        em rotinas de anedota.

Debateu múltiplas saídas
Permaneceu em rotas retorcidas
E, então, morreu, sem entender nada.

Escrevi este poema há alguns semestres. Foi uma provocação da faculdade. Há coisas de que desgosto profundamente, mas por ter sido escrito no início do curso, compreendo o processo como parte do meu aprendizado e mantenho-o assim. Já até tentei ajeitá-lo, e talvez o faça um dia, mas ele comunica exatamente o que eu sinto, com palavras que não são as minhas de agora, e por isso parecem estabelecer diálogo: a eu que fui deixando marcas para a eu que sou. Tenho retornado muito a ele ao longo das últimas semanas. Acredito na morte do autor, e considerei desconsiderar este pedaço do parágrafo, mas escrevê-lo faz parte de assimilar este todo que nos foi dado. Somos todos ou os muitos rebentos abandonados, ou a plateia que os acompanha e, se antes morreriam sem entender nada, agora o fazem privando entendimento a qualquer um. Não entendem os que perecem nem os que permanecem. Os poucos que se dizem esclarecidos atalham as rotas para o fim. Foi o crime de permitir esta realidade que fez a experiência do isolamento ruir. Os números sobem, os corpos empilham, e os gritos que representam ecoam, por todos os lados. Por que tanta gente finge surdez?

São quase dois meses e o horizonte reserva mais alguns. Sessenta dias de exílio ao avesso (como sabiamente o chamou Willie) e não há como esperar apenas flores neste campo minado. As paranoias e as culpas estão, de prontidão, cercando o meu espaço, aproveitando mínimas oportunidades para consumir, sorrateiras, o otimismo. Nestes tempos não têm sido difícil para elas, que vivem da exploração de rachaduras. Sei de sua presença por manifestações que variam em magnitude, mas deixam rastros de angústia e ansiedade. Eu devia ter aprendido que respirar fundo é mais efetivo que exasperar frustrada, mas às vezes essa é a única saída válida e abraçá-la também é conhecer-me mais.

Conforme escrevo estas palavras, lembro a mim da razão pela qual as componho e, então, retomo o meu ritmo de novo: entre os muitos altos e baixos, controles e descontroles, agarro-me à criação, às suas múltiplas possibilidades e à urgência em mantê-las, que é o que, desde que me conheço por gente, me mantém sã, alerta e determinada. Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobre e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Clarice sempre entendeu que é a escrita a maior afirmação que tenho e a maior justiça que conheço, portanto, deixo a ela o fim do meu relato.

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