Já
peço meu primeiro perdão desde o início, porque sei que sou pipa demais para
escrever um bom diário.
Estou
mal e porcamente presa ao chão. De poucas convicções, uma é que o tempo é o
vento, passa sem ninguém ver e só se sente quando pausa... e estabacam-se as
pipas no chão. Esse, aliás, é um desses raros momentos de estabacamento, se
tudo der certo. Outro perdão requerido: eu tenho medo do chão. Por favor não me
façam ficar muito tempo no chão, eu não aguento. Chão duro é desgraça demais
para meu corpinho de bambu e rabiola. Quero ficar longe, longe... onde o tempo
passa e eu fico lá, voando no mesmo lugar.
Nessa
missão de marcar ao menos um dia num diário, tenho a chance de ouro, para mim,
pelo menos: amarrar essa corda solta em
um ponto fixo, uma vez na vida. Ter certeza do hoje para depois me lembrar que,
por mais que pareça, não estou suspensa num tempo pré-tempo de lenda, sem
início nem fim.
O
que são cem dias? Não sei. Cem vezes nascer do sol, sem vezes para se nascer sol
nenhum? Devo ser sincera e dizer que vejo o sol cruzar de ponta a ponta da minha
janela, quando as nuvens assim me permitem. Então, podem confiar, ele ainda
existe e está lá. Mas então outra confissão... de uns tempos para cá eu tenho
visto o quadrado da minha janela cada vez mais como uma moldura. Aos poucos meu
quarto vira um museu meio deprimente. A paisagem que eu vejo vai terminar de
virar uma pintura qualquer dia desses, e infelizmente, é uma pintura meio feia.
Mesmo
que cá na cidade o sol seja enquadrado por prédios, paredes, antenas,
guarda-chuvas ou olhares para baixo, eu sempre baseei minha noção temporal no
nascer e pôr do sol. Nada inovador, eu sei, e tampouco consciente. Tanto é, que
passaram noventa dias para eu entender que não havia passado nenhum, de
verdade. Se foi por o sol não ter nascido ou por eu não ter vivido, fico
suspensa e sem resposta.
Pergunto
de novo: o que são cem dias? Eu não levantei cem vezes, não rabisquei nem
escrevi nem escutei nem toquei flauta cem vezes, não vi cem filmes e séries e
animações, não tentei me alongar nem me esforçar nem liguei cem vezes, não li
contos e contas e artigos e relatos cem vezes, não comecei projetos, não
desisti de projetos, não fiz contato, não faleci de tédio nem de medo nem de
saudade cem vezes. Não, porque o sol do primeiro dia nem sequer se pôs ainda.
Eu não o vi ir, nem vir, então ele não foi nem veio...certo?
Talvez
seja só a consequência cósmica e melancólica do pós-solstício, essa certeza de
que o tempo agora não se marca e sim vagueia em Hiperbórea até o meu aniversário
lá no equinócio. Sim... uma estação segue a outra, sunrise, sunset, logo o ciclo volta a fazer sentido. Ainda vou me convencer que o tempo só
começa na primavera de novo. Mas como vamos chegar na primavera se o tempo não
passa? É até irônico, mas se o tempo é o vento, e ele parou, como que ainda
estou voando presa no mesmo lugar? Suspensa de novo, sem resposta.
É por
isso que eu não faço diários. Estabacamento é um negócio delicado. Talvez eu
deva recomeçar, deixar as coisas mais concretas. Ou tentar. Vamos lá:
Paro
o que estou fazendo e medito, recomeçando. Que dia é hoje? Sim, já falamos
sobre isso, é o centésimo. Não, é o
primeiro ainda. Estamos no canto
primeiro, chuchu. Tá, mas é vinte e cinco hoje. Já se passaram cem páginas.
Mas como? Quando que a história anda?
Ela tem andando, e bastante. A corrente, se não meu barco, joga uma frota
inteira nas pedras. Onde estão essas
pedras? O mar é ilusão, são tudo pedras, é só uma questão de profundidade...
no fundo no fundo, até a menor delas quebraria esse barquinho. Só que aqui onde
eu tô, o mar não é raso, ou não está. Que sorte. Será que o horizonte está tão
curvo que não dá mais para ver? É uma odisseia estática, e na melhor das
hipóteses, sem intercorrências... é isso?
Alguém
amarra a alegoria na âncora e a âncora nas Fossas das Marianas, por favor. E
que fossa, nossa. Não, tangente, pode
parar.
Que
desventuras nesse meu barco-pipa à deriva, que desventuras nesse primeiro-ou-centésimo
dia? Bem, o barco está bem, seus navegantes estão... bem, surpreendentemente
bem até, eu diria. O horizonte parece o mesmo, bem curvo, só mais nublado quase
não vejo outros barcos. As janelas, abertas porque está abafado, e fechadas
porque está chovendo, e abertas de novo porque precisamos ver o que está
acontecendo no mundo. Mas não era uma pintura esse mudo? Qual a realidade de
olhar pela janela ou pela janela do computador? Como disse, na melhor das hipóteses,
sem intercorrências. Se é tédio, uma vocação para pitonisa ou pra mênade que vão
decorrer de nada decorrer, só o tempo para dizer. Isso, quando ele voltar a
andar.
Belo texto! Parabéns!
ResponderExcluirMuito consistente, bem escrito, algo do tipo que nos leva do principio ao fim do texto....mas que jnduz a reflexões mais aprofundadas do que essa pandemia impôs a todos de forma inimavinavel! Parabéns pelo texto !
ResponderExcluirExcelente texto Bebeth.
ResponderExcluirParabéns, Jari.