Inebriante
Já se passaram 85 dias desde o início
da pandemia. O estado de emergência
foi decretado em Porto Alegre no dia 17 de março, desde então, eu também me
encontro alerta. Passei a beber com mais frequência, até evoluir para
diariamente. Por noites tenho apelado para o chocolate. O doce é inebriante e
também me fornece bem estar. Racionalizei a situação e decidi não comprar mais
chocolates. Tenho estado sozinho. Falo sozinho. Tento cantar. Reviso os quartos
vazios dos meus filhos todos os dias. Sozinho, gastei uma barra de sabonete
inteira, mas ainda não consegui acabar com o xampu.
Há 37 dias, seis horas, 17 minutos e 47 segundos não toco em ninguém.
Trinta e tantos dias em que ponho o pé dentro de casa, ligo a televisão, vou
tomar banho e janto em minha auto-companhia. Preciso de algum ruído além dos
meus próprios. A Miche e as crianças estão bem longe, em segurança. Alegrete,
no interior gaúcho, é um oásis se confrontada com a Capital e é um paraíso se
compararmos à situação brasileira.
As matérias
jornalísticas são insalubres e povoam telejornais, rádios, jornais, sites de notícias. A realidade é
deletéria desde a sua negação até o seu sensacionalismo. As notícias só não são
mais infames e anacrônicas do que o Presidente da República. Como último ato,
ele achou por bem mandar suprimir informações de mortes acumuladas dos atuais
boletins epidemiológico-militares do Ministério da Saúde. Isto em um país onde
há uma subestimação monstruosa de casos pela falta de testagem dos doentes.
Talvez ele deva acreditar que pessoas mortas e não contabilizadas são pessoas
“não mortas”. Mas, se também são pessoas “não vivas”, então serão zumbis? Sei
lá o que se passa naquela cabecinha vil. Em plena era da informação, alguém
acredita que estes dados irão desaparecer? Nem a indigência será empecilho a
essa resposta. Contudo, a cena nacional tem evoluído num roteiro digno do Monty
Python. O histórico de atleta do nosso mandatário máximo, que o deixou imune ao
coronavírus, ajudou-o a demitir um ministro da justiça e dois da saúde em meio
ao caos sanitário. Temos pexotadas, temos bizarrices em “entrevistas” diárias.
Ainda bem que os internautas registraram, e estão registrando, aquelas falas
para todo o sempre. O nosso país está sendo elevado a uma categoria de chacota
mundial.
Desprezando a raiva, deixemos a política pra lá um pouco. Vamos aos
números. Segundo sites independentes,
no placar da Covid-19 no Brasil, temos 38.497 mortos, 742.084 casos confirmados,
uma taxa diária girando em torno de mil óbitos e, em letras garrafais nos scouts do Governo, são 311.064 pacientes
curados. Estamos ganhando de lavada, minha gente! Só que não...
Aqui em Porto Alegre a situação parece estar mais controlada. Os
números totais de pessoas que perderam a vida para a doença são considerados
baixos (48) e o sistema de saúde está suportando bem. Parte da população,
aquela mais fervorosa, parou de nos acusar de que estaríamos levando a cidade à
falência. O comercio está reabrindo. Os shoppings voltaram a ser palco de
clientes ululantes. Sôfregos a consumir, eles devem ter rogado a algum Santo
atlético. São Paulo Cintura, rogai por nós!
Eu achei uma aposta arriscada. Mas o quão chata seria uma vida sem
riscos, não é mesmo? Dizem por aí que o vírus do desemprego é pior do que o da
doença. Fiquei pensando nisso. Empregos são perdidos desde que o mundo é mundo,
mas só perdemos a vida uma única vez. Eu já fui demitido (umas três vezes) por
diversos motivos. Consegui dar a volta por cima porque tinha uma família, que
me suportou, e porque tinha S-A-Ú-D-E para suportar.
Na minha função de fiscal da Vigilância em Saúde, um dos objetivos do
trabalho consiste em ações de prevenção para que as pessoas não precisem de
hospitais. Logo no começo, acreditava que o primeiro mês de pandemia seria o
pior. O que foi um erro grotesco, e estou com medo de qualquer antevisão do
futuro.
Até aqui, enfrentamos muita coisa pesada, onde a morte esteve por
perto. A morte e a ignorância. A ignorância e a mesquinharia. A mesquinharia e
a ganância. A degradação humana vem de eras. Havia trabalho análogo ao escravo,
resultante de relações de poder desequilibradas, e garis submetidos ao
descalabro humano. Houve quem enxergasse oportunidades de lucrar com a pandemia
oferecendo um drive thru para coleta
de exames para Covid-19. Até aí, tudo bem, se não estivesse sendo utilizado o
estacionamento do condomínio em que se localizava o laboratório. Imaginem o Seu
Fulano, terapeuta holístico, chegando para trabalhar e sendo recepcionado por
um astronauta na garagem. Também foi preocupante o caso de uma empresa
terceirizada para a coleta de lixo hospitalar da cidade. Os trabalhadores
paramentados descarregavam as bombonas de lixo infectadas e, junto a esta área
de contaminação, podiam beber água filtrada por um equipamento com três
torneiras. E, se quisessem relaxar um pouco mais, tinha também uma garrafa
térmica com café adoçado que poderiam sorver em copinhos plásticos dispostos em
cima do filtro. Tudo isso é impressionante. Mais do que isso, é impensável.
Teve uma inspeção que vale contar com detalhes. Foi a do cemitério.
Por ironia, o mesmo cemitério católico onde os meus avós paternos estão
sepultados. Era uma demanda banal. Alguém reclamando de que os funcionários do
cemitério não tinham álcool em gel, não usavam máscaras, não faziam
distanciamento das pessoas, não, não, e mais não. Enfim, pensei em aproveitar a
oportunidade para fazer uma visitinha a Vovó e Vovô. Porém, eu sofro do “mal do
fiscal”, e comecei a elaborar hipóteses: E se eu encontrar algum velório? E se
a capela estiver lotada? E se o falecido testou positivo para o novo
coronavírus? E se o caixão estiver aberto? Pois então, o meu sangue começou a
circular frio pelas veias. O pior é que o “mal do fiscal” não termina por aí.
Na minha cabeça, produzi respostas aos questionamentos hipotéticos: Vou ter que
averiguar o velório. Vou ter que mandar as pessoas chorarem em casa. Vou ter
que perguntar à viúva (ou viúvo ou filho ou neto) do defunto se a (ex) criatura
morreu de Covid-19. E, como todo o “mal do fiscal” não termina bem, vou ter que
mandar fechar o caixão e enterrá-lo de imediato. É aterrorizante esta ânsia dramaturga.
Então, eu fui até o endereço denunciado. Confesso que suava ao entrar no
cemitério, apesar de ser um dia frio de outono. Havia uma névoa suspensa no ar, e o silêncio era indefectível. Em linha reta, dirigi-me ao setor
administrativo. Rapidamente, o gerente de vendas e atendimento ao público
(descobri que cemitério tem gerente) me deu a notícia. Relatou com uma voz
assustada que, naquele dia, não havia nenhum velório. Terminada a inspeção,
decidi ir embora o quanto antes. A visitinha aos meus avós ficou para outra
oportunidade.
Agora, estou há 37 dias, seis horas, 30 minutos e 12 segundos sem
tocar em ninguém. A televisão continua a matraquear. Enquanto a minha família
estava aqui comigo, eu podia tocá-los, dar e receber abraços, trocar um pouco
de calor humano. Tento me convencer de que eles estão mais seguros onde estão e
que eu estou bem. Posso trabalhar tranquilo sem a preocupação de trazer a
doença para casa e infectar as pessoas que amo. Sou um adulto racional. Até
gosto de ficar sozinho e... Que estupidez!
A quem eu pretendo enganar? Não estou preparado para este tipo de solidão. Não
estou.
Tentei participar à distância da vida deles. Fizemos vídeo-chamadas,
trocamos áudios, fotos, mensagens, mas parece que falta alguma coisa. A minha
esposa se desdobra para manter a nossa proximidade. Apesar dos esforços dela,
os detalhes se perdem. Aquele sentimento espacial de completude não está
disponível para mim. Eles não estão nem na minha visão periférica, nem naquele
contato de almas que se tem sem sentir. Falta presença, em todos os sentidos.
Eu nunca havia estado assim tão frágil.
Meu filho cresce a olhos vistos. Tem só quatro anos. Ele é
argumentativo, engenhoso, persuasivo ao extremo advogando em causa própria.
Fala comigo ao telefone com desenvoltura. Papai,
eu fiz novos amigos hoje! Pergunto do que brincaram. Eu escalei uma árvore sem ninguém ajudar. Queria que tu visse! O
papai não conseguiu mais responder.
A minha filha, na última vez que a vi tinha três dentinhos, agora tem
quatro. Está começando a falar. Oi, não,
tchau, Tetê, mamãe, papai. Pede papá, indica que quer aguinha. Adora
fazer bagunça com o mano. Fala papai
para tudo, e aponta para a tela do celular. Menina de sorriso fácil. Sempre
sorri quando me vê, joga-se para trás encobrindo o rosto com as mãozinhas (fazendo-se
de envergonhada). Já possui trejeitos que são somente dela. Mal caminhava, agora
corre e anda com firmeza. Eu não estive por perto. Dela, eu perdi coisas
demais.
Além das crianças, eu sinto uma falta terrível do abraço da minha
mulher. Virei um taciturno horripilante vagando pela casa. Penso nela e, como
se imergisse dentro de mim, transporto-me para encontrá-la. A sua boca, o seu
hálito, o brilho em seus cabelos, as suas curvas sendo percorridas pelas minhas
mãos. Desperto por noites a fio, estendo o braço, e não a encontro. Seu lugar
na nossa cama está gelado. Desabo no silêncio. Na minha cabeça, um zumbido vazio
me aturde. Só escuto este maldito zumbido! Sinto uma dor de cabeça cansada e lágrimas
fugidias, ultimamente.
Não sei o que ainda teremos de enfrentar aqui em Porto Alegre. E isso
me preocupa, pois o retorno da minha família é incerto. Nesta semana atendi
dois surtos da doença, um com oito, outro com cinco infectados. Lugares tão
distintos quanto o revólver e a reza, mas por iguais insurgentes. Os números de
casos e de óbitos causados pelo sars-cov-2 têm aumentado, e ainda tem gente capaz
de negar a realidade. Meus colegas epidemiologistas revelam que os surtos estão
aparecendo em toda a Capital, e ainda existem os sabichões que não acreditam na
pandemia. Preferem não assistir a Globolixo (sic). É, simplesmente, inacreditável.
Como se o problema maior fosse a notícia (em seu viés), e não a capacidade pessoal
de interpretação da mensagem.
A solidão me facilita a pensar em tudo. Chega num ponto em que o
cansaço vai se transformando em raiva. Achei que a minha se dava só no campo
político, mas nada é só. Estou cansado desta gente fraca. Minoria que parece
multidão. Gente fraca sem um pingo de empatia, sem uma nesga de solidariedade.
Gente estúpida! Pessoas sem respeito! Enquanto uns adoecem, outros se divertem.
Enquanto uns morrem, outros fazem festinhas proibidas. Isso não é rebeldia,
crianças! Vocês se aproveitam de uma situação para a qual não estão contribuindo.
Ficam bêbados entre amigos. Vão pescar, fazem churrascadas, riem até vomitar,
tomam mate ao pôr do sol. E o meu rosto está marcado de tudo.
Agora, estou bêbado e sozinho. Ganhei olheiras, que ganharam vincos
no meu rosto marcado pelas máscaras. Vincos desenhados até as orelhas. Sulcos
pelos quais escorri saudades ao acordar à noite. São verdadeiras cicatrizes que
me acompanharão no espelho.
Li em um livro do autor espanhol Javier Cercas que o ofício de
escritor é muito filho da puta. Pois o bom escritor torna visível o que já é visível e ninguém quer ver. Aquela
realidade desconfortável, que as pessoas desejam negar, o escritor a desnuda
usando o dom da escrita como escudo para não enlouquecer. Para Cercas, e eu
concordo, ao enxergar a realidade, um escritor nunca mais deixará de vê-la e
terá de conviver de modo pacífico (se conseguir). Fiquei pensando nas coisas que
vi e no que estou (e estive) fazendo. Eis que tenho dois ofícios filhos da
puta. Tenho que trabalhar pela saúde dessa gente fraca também. É muita empáfia
minha achar que sou escritor. Talvez eu me torne um daqui a alguns anos. O
fato é que me sinto melhor depois de descarregar por aqui as angústias dos
últimos dias. Posso não ser um escritor, mas já estou utilizando o escudo.
Estou há 37 dias, seis horas, 39 minutos e 27 segundos sem tocar em ninguém.
Sentipensar amigo querido, contigo senti embalada pelo teu texto lindo!
ResponderExcluirObrigado por me ler! Seguimos na luta!
ExcluirGrande bj!
ExcluirApenas maravilhoso!
ResponderExcluirObrigado! Um bjããão!
ExcluirEstou sem palavras... As poucas foram enviadas lá pelo Facebook! Lindo texto da grandeza de quem é sensível e talentoso. Um abraço e te cuida bem pra receber a família de volta quando tudo isso acabar! 😘
ResponderExcluirObrigado querida! Seguimos na luta sem nos descuidarmos do que nos faz bem! Te cuida também! Bj
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMuito bem escrito e descrito! Força Marcelo!
ResponderExcluirObrigado! Força!
ExcluirMaravilhoso texto amigo Marcelo.
ResponderExcluirCompartilhei no Facebook para que meus amigos leia.
Queira Deus seja encontrada uma vacina para tds os humanos possam se abraçar novamente. Abraço.
Obrigado!
ExcluirGostei muito do seu relato! Cada contexto de cada pessoa é um pedaço da realidade que vamos juntando e assim ampliando nossa perspectiva desta insólita experiência coletiva.
ResponderExcluirEscrevi também aqui no diário, meu dia é o 99.
Com licença pra fazer só uma pontuação a respeito do termo 'filho da puta'.
Mais do que nunca, estamos todas e todos ficando mais atentas(os) ao uso da linguagem em referência às categorias sociais (e as minorias de poder) que sem querer podemos atacar.
Sexismos, racismos e todas as homo,bi,trans,lesbofobias devem ser combatidas.
Sugiro que não usemos a naturalizada expressão 'fdp', tão naturalizada que as pessoas não se dão conta do que estão reiterando quando a proferem.
Afinal, porque usar as putas ou suas filhas ou filhos para insultar algo ou alguém> Repensemos!
Obrigado pelo seu comentário! Fiz uma citação do livro A Velocidade da Luz (Javier Cercas) e fiquei preso a ela. Não me dei conta do chamado "preconceito estrutural". Espero que a expressão não lhe tenha estragado o sentido do que foi escrito. #chegadepreconceito
ExcluirOi Marcelo!
ExcluirObg pela conversa. O sentido não se perdeu não.
Reconheço q fico impactada com todos os textos em q encontro, esta e outras expressões naturalizadas na nossa cultura.
Dependendo de que local do texto as encontro, às vezes abandono a leitura do restante.
Não foi o seu caso, já q me deparei com elas ao fim. Ainda bem!
Sigamos escrevendo e problematizando por um mundo melhor. Felicidades...