Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

11.8.20

Dia 147: por Luiz Gonzaga Lopes

O TGV da vida

Quando certa manhã Luiz Gonzaga Lopes acordou de sonhos intranquilos, estava em sua cama metamorfoseado em um jornalista cultural com medo e ao mesmo tempo sem medo de contrair o vírus, AQUELE, o inominável, que tem ao final de seu nome fantasia o 19, se o DEZ é NOVE, é porque algo está muito errado. Sempre que acorda, LGL reza, não porque tenha fé cega, mas porque crê no rito, em falar com alguém que não é visível.

Acabo de lembrar que este é um diário da pandemia, que preciso descrever de forma documental ou ficcional um dia na vida de um jornalista cultural. Com um narrador onisciente em discurso indireto, terceira pessoa, eu não irei conseguir entregar o referido texto a contento para a exímia amiga das Letras, Julia Dantas, que, na época da presencialidade, me proporcionou alguns papos interessantes sobre literatura, cinema e vida.

Tergiversações à parte, o meu dia começa com uma oração. Uma frase também começa com uma oração, ora, ora. Respeitado o rito, começa a preparação para um dia na vida de um jornalista cultural e editor de caderno de Cultura na Porto Alegre que produz muita cultura, mas por vezes não a valoriza do modo como deveria. Muito café feito na moca, frutas (banana esmagada com aveia, confesso), pão, manteiga e queijo, um ou outro bolo ou omelete.

Um amigo do jornalismo cultural combinou uma live comigo pelo Instagram às 9h da manhã. Horário diferenciado. Talvez tenhamos mais de 100 pessoas ao vivo. Ele me chama pelo Insta, eu atendo e posiciono meu celular de modo horizontal, pois tudo que é feito na horizontal é mais gostoso. O papo começa solto e em alguns momentos, ele pergunta pelo meu início no jornalismo e depois em editorias de Cultura. Digo que a primeira experiência profissional em jornalismo foi numa rádio como produtor e redator de editoriais dos programas da manhã e que o meu início no jornalismo cultural foi numa revista semanal nesta mesma cidade. A conversa que deve durar 1 hora avança para os desafios de um editor de Cultura neste momento de pandemia. Explico que as lives e a produção de conteúdo exclusivo do meu veículo de comunicação são a solução, bem como a busca de material exclusivo, ainda não abordado por outros colegas. Nas perguntas pessoais, os amores, as viagens, os encontros e desencontros e a vida de escritor diletante, com um romance e uma biografia publicados e alguns contos publicados em duas antologias e revistas. E por aí vai. Nos despedimos com a guilhotina do Instagram e eu sigo para dar a primeira visualização de e-mails do dia. Minha caixa chega a ter mais de 5 mil e-mails, dos quais uns 500 ainda não lidos. Pessoas oferecendo artigos para o suplemento de final de semana, outras oferecendo pautas que parecem ser a oitava maravilha cultural do mundo, ainda outras fazendo contato via e-mail ou whatsapp, ansiosas pela publicação de algo ou oferecendo entrevistas. 

No meio disto tudo, eu faço a produção das lives diárias para o jornal, nas quais entrevisto músicos e por vezes gente da literatura, teatro ou artes visuais. Ainda antes do final da manhã, termino a leitura dos principais jornais do dia e sites com notícias da área e preparo as reuniões da tarde com a equipe da editoria e com os demais editores, tudo via Skype. O almoço é rápido. Algo pedido na esquina ou feito às pressas, arroz, bife e salada; massa bolonhesa; arroz, batata e espinafre, com um suco de laranja feito na hora.

A tarde é pura gincana. Fico pensando que logo que começou a pandemia, eu tive a certeza de que ia ler todos os livros clássicos que ainda não li, ver e rever os filmes russos, iranianos, chineses, finlandeses e espanhóis tão sonhado. O velocíssimo TGV da vida ordinária e focada no trabalho avançou sobre mim e eu fiquei amarrado nos trilhos esperando-o passar por cima. Resiliente. Este sou eu. A divisão das pautas do dia, a edição das páginas do jornal. Uns dias são três, em outros são oito ou dez, fora o cadastrar de matérias no site, a produção de conteúdos exclusivos. O café é velho companheiro, adrenalina natural e adoçado com sacarose.

Muitos telefonemas, cinquenta conversas verdinhas no Whatsapp. Eu sou um visualizador nato, mas pior que respondo tudinho, mesmo que para dizer que estou ocupado. Chega a hora da live. Uma entrevista prazerosa com um músico ou um escritor. Falamos de livros que lemos, discos que ouvimos, coisas que gostamos. A pessoa do outro lado do Skype, Zoom, Google Meets passa a ser minha nova amiga de infância depois de uma hora de conversa. Este é o belo da vida das lives, das lives vividas, das ávidas lives, leave my life in peace. Peça de um quebra-cabeça que me extenua a cada dia.

Acaba a live e eu termino de fechar a edição do próximo dia. Por um momento, esqueço onde eu estou e quem sou. Não respondo às mensagens. Rezo novamente e ligo a TV numa série favorita qualquer. A de hoje é a Atwoodica, “The Handmaid´s Tale”. Torço pelas mulheres onde quer que elas estejam, seja qual for a luta. Ativo o meu ativismo, mas ainda não lembro quem sou. Quando caio em mim, estou escrevendo um Diário de Pandemia para a minha amiga Julia Dantas, escritora do magnífico Ruína Y Leveza. Por instantes, me vem à cena daquele deslizamento na Bolívia e de toda a alma contida naquele livro, mas não há mais tempo para nada. O tempo, este tirano implacável, me sussurra algo como: “está na hora de acabar este texto mesmo que não tenha ficado grande coisa”. Como um cara atropelado pelo TGV da vida pandêmica, eu simplesmente assinto com a cabeça e penso em colocar um ponto final no fim desta frase.

10.8.20

Dia 146: por Maria Petrucci

Sobre perder, ganhar e etc. 

Semana passada recebi, por e-mail, uma intimação de um escritório de advocacia de Paris. Aparentemente, eu não cancelei da forma devida a minha inscrição na academia e agora tenho uma dívida de oitenta euros, vinte para cada mês não pago. É a coisa mais excitante que me aconteceu em mais de 100 dias de quarentena: estou devendo dinheiro, a justiça está à minha procura. Os advogados ameaçavam, caso eu não oferecesse resposta em 48 horas, congelar a minha conta bancária, apreender meu veículo, confiscar meu imóvel, coisas que ou já não tenho, ou nunca tive. Primeiro fiquei apavorada; depois, ao ter notícias do gerente da academia (um homem imenso chamado Nicolas, de quem me lembro muito bem apesar de não o ter visto mais do que cinco vezes porque sempre o detestei) e descobrir que o imbróglio era de resolução rápida, embora dolorida — como arrancar um band-aid que por acaso custou oitenta euros —, acabei achando engraçado. 

Achei engraçado falhar tão miseravelmente no início da vida adulta, primeiro por ter me inscrito em uma academia, sabendo perfeitamente que adultos que trabalham quarenta horas por semana não vão à academia, e segundo por não ter me desinscrito ou tê-lo feito errado, por ter assinado um contrato sem lê-lo, por ter presumido que o contrato terminaria uma vez terminado o plano semestral no qual me matriculei, por ter confiado que, se não te dizem alguma coisa sobre o contrato, é porque não é preciso sabê-la, quando é justamente o contrário, é fundamental saber o que não te dizem, haja ou não um contrato. Achei engraçado existir em dois lugares ao mesmo tempo, ser eu mesma aqui no Brasil — meu eu triste e desapontado, cujo retorno à terra natal é amargo e solitário, e não festivo e eufórico, como eu pretendia ou imaginava no início de março, que além de não se divertir no presente gasta suas poucas economias em delitos do passado — e eu antiga ou eu pregressa na França, meu eu vibrante e aventureiro, ainda infantil malgrado os inúmeros encargos aos quais as circunstâncias me forçavam, que experimentava com gosto o erro e de quem eu jurava ter me livrado quando entreguei a chave do apartamento e fechei a conta no banco. Achei engraçado perder oitenta euros — um dinheiro absurdo em solo brasileiro, que vai me doer no bolso e poderia, aliás, ser usado para inúmeras benesses (três cursos de extensão, quatro idas ao supermercado, uma cesta básica, uma passagem de avião, cinco ou seis livros) — como se perde um sinal aberto, uma chance, ou então um brinco, uma fita, algo pequeno e substituível. Achei engraçado ser como sou ou ser isto em que me transformei: ridícula e despreparada, ou então mimada e frívola e negligente, mas também tolerante, desprendida, despreocupada; alguém que leva bastante a sério o dinheiro, pensa constantemente em dinheiro e nas maneiras de melhor reparti-lo, que pode, inclusive, passar tardes estudando-o em sua esquizofrenia capitalista para defender a taxação das grandes fortunas e o fim do imposto regressivo, e no entanto não sabe usá-lo, nem guardá-lo nem muito menos aplicá-lo ou multiplicá-lo. Ao contrário, ri sem vergonha porque jogou oitenta euros pelo ralo, porque deve oitenta euros que mal tem para uma academia francesa que mal frequentou. 

Pensar em mim mesma há alguns meses como outra pessoa — não tanto como um fantasma ou espectro quanto um clone, ou uma gêmea por bipartição, alguém que fabriquei e que portanto persiste e continua em sua temporalidade remota, congelada, ela sim feliz, à qual já não tenho acesso senão em memórias que mais parecem capítulos de uma novela — dá-me uma sensação de escape imerecido da quarentena, oferecendo-me um vislumbre de outra linha do tempo, de uma realidade alternativa em que não me cansei, não tive medo e não voltei ao Brasil. Nela vou à praia em Marseille e leio as notícias com culpa, nela 100 mil mortos me envolvem como o susto de uma trovoada, menos sufocante do que esta redoma de vidro em que nos encontramos; nela posso ver ao longe o espírito do mundo, que tanto assustou Hegel e Kubrick, cavalgando por sobre o país, mas agora ele é Bolsonaro montado em uma ema, empunhando um pacote fechado de hidroxicloroquina. Mera fantasia, porque nenhum “talvez” cura, nenhum “se” ressuscita ou interrompe: são janelas que dão para o muro, medianeras frustradas e efêmeras. Na minha outra realidade não teria havido esforço internacional pelo cuidado irrestrito, uma união da sociedade civil pela reorganização das estruturas de assistência e proteção: haveria apenas mais grama para mim, e também meu tempo de errar haveria passado — nela tomo banho de mar e já não tomo gosto no erro, e ainda tenho oitenta euros. 

Pode ser que a graça, patética por natureza, venha desta incapacidade de resolver as coisas, desta insistência pueril em arrastar problemas como resquícios de um momento ao qual não se queria dar fim. Ou pode ser que venha da própria falha, de um certo alívio na falha, na derrota, uma súbita afiliação orgulhosa aos losers contra a tirania dos winners. Os vencedores, afinal, costumam passar por cima das pessoas, e o farão mesmo que sejam corpos, dez que viraram dez mil e hoje dez vezes dez mil; poderão escalá-los, ou apalpar sua carne desocupada, revirar bolsos e carteiras enquanto fecham os seus próprios, ou dar dicas no YouTube de como prosperar em meio à catástrofe. Os vencedores acham que vencerão a morte tal e qual vencem na vida, e que vencer é um ato individual e unívoco. 

Me agrada ser um fracasso este ano especificamente, quando nos pedem comprovações de sucesso como se fossem indícios da funcionalidade de um sistema macabro, ou da tenacidade da existência contra quaisquer adversidades, a “gripezinha” que já deixou 100 mil brasileiros falecidos inclusa. Me agrada não tocar adiante a vida, ou tocar uma vida suspensa, à espera de um pouco mais de vida para todo mundo. Gosto de repente de ser improdutiva e desimportante, e de entender que o que faço sem remuneração é ou está sendo maior do que o que faço com ela, o que faço com os outros ou pelos outros mais propulsante do que o que faço sozinha. Ninguém vencerá em 2020 — ninguém vence em uma guerra, se é a isso que chegamos —, mas experiências pretéritas ensinam-nos que os perdedores da sociedade têm mais talento para a partilha e a reconstrução, talvez porque carregam consigo o desapego necessário para olhar para o lado, para o que realmente está ao lado, “é” e “está” e “assim será” ou “poderá não ser”. Fracassados têm mais tempo para remendar e reerguer (e, espero eu, planejar pequenas revoluções), porque a temporalidade do sucesso é linear, caolha e autossuficiente. Se os winners acumulam ganhos com exclusividade enquanto tantos perdem muito, ou perdem tudo, ou perdem a vida, simplesmente, parece-me perfeitamente adequado ser uma loser

Desde semana passada ando pensando naquela frase de Beckett, acho que é “fracasse de novo, fracasse melhor”, à qual resolvo conferir uma interpretação literal: quando o objetivo é apenas vencer, realmente não se faz muita coisa. 


9.8.20

Dia 145: por Karen Garbo

Como manter a sanidade mental neste momento tão crítico de nossas vidas: afunde-se num cinismo confortável e inflexível, ele será a base da sua segurança. Aliene-se com o máximo de mídias possíveis, memes de internet, séries intermináveis. Ah, foda-se. Esse raciocínio não vai me levar a lugar nenhum. Eu só queria escrever aqui algo que não fosse sobre mim mesma, porque até onde eu sei, as morning pages deveriam ser sobre criação. Eu não crio nada há semanas. Ontem à noite chorei de novo. Não, nenhuma nobreza. A inveja pura e simples, (trecho suprimido). Eu só consigo lembrar do conceito de artista sombra do livro, em que um artista reprimido faz sua arte pelas beiradas, acaba trabalhando com algo parecido com aquilo que realmente quer por medo de encarar a própria missão de frente. Pensei nos grandes artistas das gerações passadas, o que seria de nós se eles tivessem se rendido a esse medo.  E em quais são os desafios da nossa época. Viver encurralado por distrações de todo o tipo. Em um nível tão invasivo que é impossível conseguir pensar, pensar com clareza e tirar algum texto do meio disso. Minhas lágrimas ontem foram o resultado do desespero, de pensar que depois de uma semana a (trecho suprimido) não me respondeu ainda, eu tenho que me concentrar no que realmente importa, no ato de coragem que é olhar para si mesmo e pensar, e na coragem maior ainda que envolve persistir nesse pensamento e botar a vaidade a prova todos os dias, tentando achar por cima do texto medíocre a versão melhor dele mesmo. Eu sei que a cada trabalho literário vou assumir uma proposta mais difícil, mas sinto que essa barreira inicial de (trecho suprimido), sendo ultrapassada, vai ser um pouco mais fácil. E se eu comer coisas saudáveis, definitivamente isso vai afetar meu humor e a minha criatividade.

Talvez outra razão para o meu choro seja a mulher que vi ontem no supermercado. Eu tenho ido ao mercado para procrastinar. Não que eu coloque a máscara, calçado, roupas decentes e passe alcool gel só para ir procrastinar, eu tenho internet em casa, pelo amor de Deus. Mas uma vez que estou lá, eu procrastino bastante. Posso ficar horas decidindo uma marca de amaciante. Eu costumava fazer isso em catálogos de roupas livros e maquiagens na internet, mas agora que estou com menos dinheiro, faço no supermercado. Nunca faço listas de compras, isso aceleraria o processo. Nesses momentos, torna-se muito importante escolher a marca correta de pasta de amendoim (eu nunca tinha comprado pasta de amendoim antes). Não pode ter açucar sacarose, mas também não pode ser desprovida de gosto, essa, será? Essa. O que mais eu tinha que comprar? Ah, giz de cera. Ontem senti do nada o cheiro de giz de cera, um cheiro da minha infância, achei muito proustiano, e estou decidida a voltar a desenhar, então...Espera, deixa eu dar uma olhada nos salgadinhos antes, já estou levando várias coisas saudáveis, então não vai ser problema se eu levar um salgadinho, depois que eu estiver mais acostumada a fazer chips de batata doce eu largo de vez os salgadinhos industrializados, se bem que a batata doce já está apodrecendo na geladeira...Pringles. Eu comeria todos os dias se não fossem tão caros. Eu amo esse salgadinho, me sinto mal porque esse amor profundo está diretamente relacionado ao desenvolvimento de diversos tipos de câncer, e pela patética embalagem que vai para o meio ambiente junto com a tristeza do fim do pote. Mas eu poderia comer uma pilha dessas delícias que subisse até a lua. E ainda por cima, tinha uma promoção, se eu levasse o salgadinho, uma coca de 2l sairia por três reais. Eu não bebo muito refrigerante, mas com o salgadinho vai bem e...

Bem perto de mim, uma velha passou empurrando o seu carrinho. Passou não, mais correto seria dizer que se arrastava, mal empurrando com o corpo os calçados que parecia uma pantufa com um solado mais grosso. Vestia um calção que descia até os joelhos e um casaco puído. Os cabelos brancos e ralos iam até logo abaixo das orelhas. Voltei para as suas canelas, cheias de varizes, algumas saltadas faziam uma protuberância tão grande que parecia que uma árvore estava crescendo ali. Me perguntei quanto tempo de vida ela ainda teria, se o corona vírus não a levasse ainda esse ano. Enquanto pensei tudo isso, ela ainda não tinha saído do corredor. A musiquinha plácida do supermercado e o brilho do chão lustrado faziam um contraste interessante com aquela senhorinha vestida em trapos que empurrava o seu carrinho, uma perna depois da outra. Senti-me mal por pensar isso, ela tem uma vida, prazeres, ambições, por certo. O estado deplorável de suas roupas significava que não se importava com a aparência? Claro que não. Mas talvez ela não se importasse mesmo. Ela tinha um refrigerante em seu carrinho. Fiquei imaginando ela em casa fazendo força para abrir o refrigerante e fiquei com pena. Aposto que ela me odiaria se soubesse o que eu estava pensando. Ou não. Quando ela finalmente saiu do corredor, fiquei sozinha com o pote de Pringles na mão. Botei ele de volta na prateleira e fui para o caixa. Num caixa próximo ao que eu escolhi, lá estava ela. Eu não podia ver seu rosto por causa da máscara, lógico. Seus olhos tinham um aspecto enevoado, eu acho que ela nem conseguia ver direito o que estava comprando. Pensei sobre o que eu tinha acabado de fazer. Como se não comer a porcaria do salgadinho fosse me impedir de ficar como ela. Você só quer procrastinar em paz no mercado e a morte te aparece. Mas morrer pode ser um alívio em diversas situações, pensei. Isso não é um louvor do suicídio, eu só imaginei como seria não ter que estar sempre escolhendo alguma coisa, desejando alguma coisa, perseguir aquilo até conseguir e depois começar tudo de novo. A velha ainda tem que levantar todos os dias, lavar as suas roupas, ver essas roupas se desintegrando ao longo dos anos junto com ela e ir até o supermercado, ser julgada por uma fedelha, depois voltar até a sua casa e finalmente ter o prazer fugaz e corrosivo de beber o seu refrigerante. E isso ainda é um dos melhores cenários possíveis para envelhecer. Eu já li aquele texto do David Foster Wallace sobre ter atenção no supermercado, aliás. Também acho que a solução para esse impasse da vida é prestar atenção nos detalhes, e ali estava eu, prestando atenção nos detalhes e tendo uma crise existencial na frente da caixa do supermercado. Pedi para a moça esperar um pouco. A velha ainda estava passando os seus produtos no caixa. Me aproximei, peguei uma coca que estava no mini freezer e voltei para o meu caixa. O que isso quer dizer? Não faço a mínima ideia. 

8.8.20

Dia 144: por Flávia Cunha

Querido diário, falo do futuro. Não por ter conseguido fabricar alguma máquina do tempo. Mas é para os dias que ainda estão por vir que me remeto, quando fico mais triste nessa quarentena interminável. Me projeto mentalmente para algum momento de 2021 no qual a vida de todos esteja um pouco menos cinzenta, sem a sombra de um balanço diário de mortes por um vírus que desestabilizou o planeta.  

Às vezes, retorno ao passado, com recordações pessoais que me dão alento ou tentando entender como tudo isso começou. Uma pandemia com um presidente autoritário e incompetente no poder é algo que não imaginávamos quando 2020 começou.

Estimado diário, percebo que não faço contagem do número de dias passados em distanciamento social. Imagino que se contabilizasse a passagem do tempo ficaria ainda mais ansiosa por estar confinada e longe da vida que eu tinha, tão repleta de eventos culturais, encontros com amigos e trocas afetivas presenciais.

Bendito diário, sinto que criei janelas virtuais para o mundo, para tentar manter alguma esperança. Mesmo com a pandemia. Apesar do presidente. Ainda que com tanto egoísmo dos que preferem fechar os olhos para a gravidade do momento e colocar a economia acima da vida.

Amado diário, percebo que nem sempre consigo manter a sanidade e o equilíbrio emocional. E choro no banho, lembrando dos mortos, sentindo pena de quem perdeu pessoas queridas, lamentando por quem não tem um teto para manter-se mais seguro em meio a tudo isso.

Prezado diário, descubro que escrever é uma forma de sofrer menos. E, por isso, te escrevo.

7.8.20

Dia 143: por Letícia Heinzelmann

A quarentena alheia é mais verde

Eu invejo quem está isolado, reclamando que, dentro de casa, os dias passam iguais. Pois aqui fora os dias também passam iguais: igualmente repletos de ansiedade, como uma nova arritmia a cada flagrante desrespeito à saúde coletiva, de quem insiste em tá na rua sem necessidade, de quem vem até mim. Afastada da faculdade, da bolsa acadêmica, da possibilidade de iniciar um estágio, não posso reclamar de conseguir manter meu café semiaberto, como parte desta indústria essencial que é o serviço de alimentação. Mas preferia que não viesse ninguém. É um contrassenso, mas assim é 2020. Era pra ser o meu ano, estava resolvido! Mas a pandemia riu na cara das nossas resoluções...

Na verdade, os dias não são bem iguais: cada vez mais a raiva toma o lugar do medo. Lavar a roupa, os cabelos todo dia já não precisa mais, muito menos as compras. Chega de fazer tudo de carona, eu preciso andar. Afinal, a cada dia está mais claro que o risco maior é no contato, pelas vias aéreas, e não tanto nas superfícies. Então, eu relaxei. Mas os velhinhos tomando sua cerveja na calçada, as crianças levadas à pracinha, os vizinhos que dão festa relaxaram a um nível temerário. Por que precisamos estar no mesmo barco? Às vezes dá vontade de me lançar ao mar.

Meus dias de folga são tomados pela contemplação das coisas simples: poderia passar toda a semana observando meus gatos, minhas plantas, o movimento do sol pelas janelas. Possivelmente isso também não seja verdade, mas já que não vai rolar, vou dizer que poderia sim, só para enticar com quem reclama da rotina caseira. Estamos afastados, mas ao mesmo tempo tão cientes de como todos estão encarando este período. Nas redes sociais, ao menos, a gente sabe quem é quem, seja pela foto ou pelo nome estampado como num crachá. Já na vida real, cada ida ao mercado, o evento social mor, é um eterno encarar-se sem saber se aqueles olhos pertencem mesmo àquela pessoa... Para uma míope, é exaustivo. Crachás, por favor!

Achei que ia ler muito nas minhas tardes no café, esperando pelos pedidos de delivery resolverem apitar. Lá por abril, devorei uns quatro livros em poucos dias. Amaldiçoei a Ufrgs por não me permitir essas leituras contemplativas entre tantas e tantas obrigatórias. Desde lá, devo ter lido um e meio. Um livro eternamente pela metade, pois a ansiedade não permite concentração suficiente para terminar. É a analogia perfeita: o livro pela metade é como a vida pela metade que estamos levando. E cada “volta à normalidade” apenas acrescenta mais temores, então melhor não terminar o livro. Deixa em suspenso, enquanto espera que todo mundo resolva ficar em casa. Quando passar, eu termino.

6.8.20

Dia 142: por Helena Terra

Tanto faz. Mas, essa manhã, resolvi caminhar mais cedo. Sim, eu caminho alguns quilômetros - de tênis, filtro solar, fones de ouvido e máscara - por orientação médica.

A máscara me esquenta as bochechas mesmo em dias frios. Nos quentes, me faz sentir um leitãozinho com uma maçã na boca pronto para ir ao forno. O que é estranho porque sou o dedo fininho do Joãozinho dos contos da linda casinha da bruxa ou uma magricela mesmo.

Antigamente, no tempo das serenatas, uma magrelinha como na música. Para receber uma serenata, a pessoa precisa morar em uma casa. Moro em um décimo andar. Empilhada como quase todos nós. E gosto.

Não gosto dos vizinhos do apartamento de cima. Arrastam móveis vinte e quatro horas por dia sete dias por semana. E falam alto. Eufemismo para gritarias. Antes da quarentena pareciam civilizados.

Eu comecei a minha, agitada, acreditando no fim do mundo, porém dentro dos limites do meu apartamento. Se o meu apartamento falasse, não seria um problema. Talvez, ele fizesse leves fofocas a respeito de algumas insônias, de uns breves cochilos, de uma quase paixão frustrada ou frustrante, de outra em andamento e de algumas preguiças, poucas porque tenho inclinação para obsessiva, e limpar, lavar, arrumar etc. acariciam a minha cachola.

Tenho também inclinação para ler e escrever. Bastante.

Então, tal qual ontem e antes de ontem e antes e antes todo o meu passado, hoje li, e o livro escolhido foi o “Das coisas que eu disse enquanto você dormia”, da Ana Moraes.  Terceira vez com ele. Eu sou uma pessoa repetitiva e persistente. Poderia estar no elenco do “Feitiço do tempo”, prestigiando o dia da marmota. E poderia também não estar porque adoro novidades. 

E como novidades não acontecem a toda hora desde que eu nasci e, em quarentena, menos ainda, eu as coloco na minha rotina. A frase “a rotina tem seu encanto” me coloca na vida. Eu me vivo usando a imaginação e recorrendo às muitas formas de arte para me auto encantar. Escrever, talvez porque seja a parte que me cabe desse desmundo, escrevo todos os dias. Eu escrevo para me viver.

Eu me vivo, tu te vives, ele não, nós nos vivemos. Nós, os sobreviventes do vírus, dos noticiários e do feudo. Não é fácil sobreviver no feudo. A gente sabe. No feudo, a palavra falta está sempre presente. Falta, injustiça, desigualdade, desamparo, ganância, indiferença, abuso, manipulação, morte e muitas outras. Um glossário de más palavras nadando com o ano em uma piscina olímpica de maldades. Eu penso sobre elas, sobre os maus e tudo o mais. É inevitável. No entanto, minha concentração dedico aos bons. Acredito em sua potência e, como não sou religiosa, faço deles a minha oração. Deles e dos poemas, porque sem poemas, bah, sem poemas, nada tem graça.

5.8.20

Dia 141: por Maristela Scheuer Deves

Sempre gostei de tramas pós-apocalípticas. Filmes e livros – principalmente livros – em que as personagens são submetidas a situações extremas, caóticas, em que uma ameaça repentina subjuga a humanidade e o herói – alguém comum, como eu e você, que até então vivia uma vida tediosa – precisa enfrentar seus medos, reagir, tomar as decisões certas para continuar vivo e inteiro. 

Não devo ser a única, vide o sucesso recente de Caixa de Pássaros (Bird Box, no original), de Josh Mallerman, ou de muitos livros de Stephen King (gosto especialmente de Sob a Redoma /Under the Dome e de Celular). Parte do fascínio, penso eu, é o fato de nos imaginarmos no lugar dessas personagens: e se fosse eu, trancada numa casa há dois, três anos, sem poder sair porque um perigo invisível e que não compreendo me aguarda lá fora? E se fosse a minha cidade que estivesse “presa” embaixo de uma redoma invisível, sem ninguém poder entrar ou sair? E se fosse eu, num mundo em que um pulso misterioso enviado pelos celulares enlouquece as pessoas?

Pois desde meados de março eu, você e boa parte das pessoas deixou o papel de quem observa de fora, na segurança de seu sofá, e entrou nas páginas de seu próprio romance pós-apocalíptico. Outros continuam transitando pelas ruas, por necessidade ou por ignorância de que o perigo, agora, é real. Talvez não seja nada tão espetacular como aviões explodindo e vacas sendo partidas ao meio pela redoma, nem pessoas transtornadas ao atender uma ligação ou ao olharem pela janela – e talvez seja aí mesmo que resida o problema, nessa aparente normalidade. Não vemos sequer exércitos de homens vestidos com roupa protetora pelas ruas, como nos filmes norte-americanos de contaminação e quarentena...

O que vemos somos a nós mesmos em casa – no conforto de nossas casas –, esperando. Esperando que o vírus se vá. Esperado que um remédio milagroso apareça. Esperando que se encontre a vacina. Esperando que todos façam a sua parte. E, aos poucos, enquanto olhamos pela janela e vemos crianças brincando sem máscaras, ruas cheias, futebol retornando, pensamos se não fomos nós que enlouquecemos. Se a leitura daqueles livros não nos fez pensar vivemos num deles. 

Por sorte, sabemos que há outros como nós, que vivem o mesmo confinamento. Com as mesmas dúvidas. Com a mesma saudade da família, não vista a meses. Com o mesmo medo e as mesmas precauções para o que antes seria uma simples ida ao supermercado. Por sorte, o distanciamento não impede a amizade – aliás, até promove o reencontro, virtual, de amigos não vistos há anos, e agora mais perto do que jamais foram. Por sorte, ainda temos os livros, e os filmes, embora nem sempre se tenha a concentração necessária (escrever, por exemplo, parece uma tarefa árdua como nunca antes foi). Por sorte, temos a tecnologia, e embora eu não a veja como a panaceia para todos os males, ela tem sido de grande serventia.

Enfim, por mais que o mundo não esteja em escombros, eu, você e muitos mais sabemos que o inimigo desta guerra é real (embora pareça surreal). Mas também sabemos que essa é a hora de sermos fortes, e de nos mantermos vivos. Porque, como os livros e os filmes também ensinam, não importa qual for o perigo, no fim a humanidade sempre sobrevive, e se reconstrói. 

4.8.20

Dia 140: por Lia Bianchi

Com o isolamento, muitos planos: caminhar no parque todos os dias; selecionar doações; pintar paredes; cuidar do jardim. Tudo se esgotou nos primeiros quinze dias. Passei talvez um mês inteiro numa inércia absurda e sem precedentes: Clientes sumiram, amigos distantes, cinemas e aeroportos fechados, crush proibido. Ah, vou limpar as gavetas, liberar espaços. E ali, esquecidos por décadas, meu tesouro particular: Cartas de antigos amores (um em especial que me deu um ultimato): “Sono stanco di aspettare la mia principessa”. Certo que ele deveria estar cansado, havia um oceano entre nós. Assim, remexendo no passado encontrei os textos e poemas e letras de músicas. Qualquer coisa que eu julgava importante recortava e guardava. Até o nome do perfume de David Beckham estava ali. Mas, o grande resgate foram os textos do Poetinha. Eu os copiava e os decorava e os encenava em frete ao espelho “Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces”....“Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos”. E assim, fui reencontrando minha essência. Foi trazendo o passado para o presente que encontrei uma misteriosa mistura de saudade e aconchego. Garimpei cada vez mais. Agora, a estante dos livros e vinil (sim, ainda os tenho). E ali, outro tesouro: Caetanos, Chicos, Bethânias, Plácidos. Todos a minha espera. Eu os abracei e sai bailando pela casa, eu e Chico “Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar”. Nos livros, o reencontro com Gabriel García Márquez, passando por Érico Veríssimo, José Luís Peixoto (esta lista é interminável). Neste momento meu encantamento chama-se Mia Couto.

Um SALVE aos poetas e poetisas e a toda gente que escreve e compõe por trazerem luz e leveza a estes dias sombrios.

3.8.20

Dia 139: por Geórgia Santos

Nunca fui religiosa, os dogmas sempre me espantaram. Mas isso não impediu que eu cumprisse a saga da guria católica que calhou de nascer em uma cidade minúscula da Serra Gaúcha. Até porque, não tive escolha. 

No começo, fui batizada pelo Padre Marcelino quando ainda não podia me defender. Mas tudo bem, foi só um banho geladinho e tudo aconteceu muito rápido, no verão, no colinho da dinda e do dindo. O problema, mesmo, apareceu anos depois: a primeira comunhão. Àquela altura, eu não só sabia me defender como brigava com o pessoal da catequese todos os dias. A verdade é que eu não precisava estar lá, meus pais nem eram religiosos. Seu Jorge detesta padres até hoje. Para se ter uma ideia, quando a catequista ligava para minha mãe cobrando minha presença na missa de sábado, a dona Gertrudes sabia que não tinha moral para pedir que eu fosse: “Desculpe, eu também não vou, não posso cobrar isso dela. É com vocês.” Mesmo assim, eu era obrigada a ir. Porque todo mundo em Paraí, quando completava 10 anos, simplesmente ia. No fim, eu acabei frequentando a missa todo santo sábado porque disseram que se eu faltasse mais que três, eu precisaria fazer tudo de novo. Foram dois anos horríveis até o dia em que me autorizaram a comer uma bolachinha seca. 

Mas não para por aí, não. Ainda tinha mais dois anos de catequese até a Crisma. Sim, é isso mesmo. Quatro anos de catequese no total. Quatro anos construindo um ódio irreconciliável com a Igreja Católica. Quando finalmente acabou, eu lavei a alma. Literalmente. No dia da confirmação, enquanto esperávamos do lado de fora da igreja, caiu uma chuva tremenda e sem aviso. Ficamos encharcados e marchamos pingando pela nave. Para completar, eu estava de saia branca e uma batinha amarela toda fofa. SEM SUTIÃ. 

Eu poderia estar livre, mas não. Resolvi casar na Igreja, como uma espécie de concessão à minha família - na verdade, minha avó. Do meu jeito, é claro. Escrevemos nossos votos e o padre Volmir concordou em fazer uma cerimônia menos tradicional.  Mas não me arrependo, foi uma cerimônia cheia de amor. O problema é que eu precisei me confessar e o Padre Volmir tentou me convencer que fofoca era pecado. Muito pecadora, eu. 

Mas resolvi contar essa minha trajetória para vocês porque essa saga sempre me afastou da religião. Era sinônimo de sofrimento, de contradição, de sufocamento. Eu sempre vi o catolicismo como algo retrógrado, atrasado, um espaço cheio de muito preconceito, embora o Papa Francisco seja um passo importante na direção de uma igreja mais progressista. E, vamos combinar, não estou errada. Eu sei que na Igreja Católica há inúmeros movimentos políticos importantes, que foram fundamentais, por exemplo, no combate à Ditadura Militar. Mas vocês não imaginam que esses movimentos tenham florescido em Paraí, né? Então, sempre foi uma relação muito conflituosa. 

Isso não significa eu não enxergue beleza na religião. A Umbanda me encanta com a realidade dos Orixás, acho linda a tradição judaica, a doação islâmica, o autoconhecimento do budista e, sim, mesmo a devoção dos católicos. E essa beleza da religião tem florescido durante a pandemia. De uma forma triste, é verdade, mas ela está ali, nas mãos juntas de quem faz a oração, na mente tranquila de quem tem fé. 

Há 20 semanas, minha mãe espera que Deus nos guarde; minha avó reza para que todos tenhamos saúde; minha madrinha lê altos salmos para que todos fiquemos sob uma bolha de proteção. Eu acho bonito. Claro que eu reforço que Deus deve estar bastante ocupado neste momento e que, por via das dúvidas, é melhor usar máscara, higienizar as mãos com frequência e manter o isolamento. Mas eu acho bonito. É uma forma de seguir em frente diante de tanta tristeza, tanto desdém, tanto abandono, tanta morte. 

Por isso, eu resolvi fazer as pazes com a religião como uma forma de lidar com a ansiedade, a dor e a raiva que essa pandemia me traz. Resolvi fazer as pazes com a Igreja Católica para tentar espantar o ódio por quem coloca a vida dos outros em risco, a frustração por não ter um governo inteiro, o medo de perder alguém querido, a tristeza por quem já precisou passar por isso. Mas resolvi fazer isso do meu jeito. Ou seria à la Jesus? 

Como?

Eu faço pão e bebo muito vinho. 

2.8.20

Dia 138: por Guilherme Smee

Hoje é Domingo, mas todos os dias são Domingo.

Hoje é Agosto, mas todos os dias são Agosto, mês do desgosto.

Sentimos esse desgosto, todos, nos dias durante a pandemia. 

O desgosto de não poder mais fazer as coisas que a gente fazia, mas também aquele desgosto de sem gosto, de apático, de sem sal nem açúcar, porque as coisas continuam as mesmas.

O COVID-19 também é caracterizado pela falta de paladar, a falta de olfato, a falta de motivação e a falta de ar. São sintomas que todos nós estamos sentido aprisionados em nós mesmos como nunca antes, estando contagiados com o vírus ou não. A claustrofobia tem as regras do jogo.

Cada dia que passa fica mais difícil manter um fio de sanidade com as tarefas que se acumulam dentro da casa e dentro da mente. 

Talvez, num futuro próximo, as coisas que enlouquecem as pessoas sejam relativizadas. 

A ansiedade e a fobia social, por exemplo, estão hoje na ordem do dia. E desculpa, gente, eu já sentia tudo isso que vocês sentem hoje, muito muito antes. Me sinto os vikings estragando o dia de ação de (des)graças dos pioneiros.

Eu já guardava distância das pessoas desconhecidas, já evitava ao máximo aglomerações, já mantinha uma rotina de higienização das mãos mais dura. Só faltava usar máscara. Se bem que mascarava meus sentimentos. Fingindo estar bem quando só queria fugir desses lugares.

Trabalhar de casa, então, para um freelancer é rotina. E, como diria aquela banda da Rita Lee, “eu sou free, eu sou free, eu sofri demais”. Não tem essa de horários ou finais de semana. Nem carteira assinada, nem descanso, nem aposentadoria. Freelancer trabalha quando tem trabalho. E, se tem trabalho sempre, trabalha sempre. 

Então de certa forma eu gostaria de sentir um schadenfreude sobre a Pandemia. “Agora eles vão ver o que é bom (pra tosse?)”. Mas não, eu não sinto isso, não. É mais um alívio e uma esperança de que vão entender um pouco das minhas esquisitices quando acabar esse período antissocial que estamos vivendo.

Veja como o normal é construído socialmente. Engraçado como somos levados a pensar o que pensamos em sociedade. Hoje, normal é ser antissocial. Não é um novo normal, é um velho normal. Ser antissocial é, hoje, uma questão de vida ou morte. E isso pode ser verdade na cabeça de muitas pessoas A.P. (antes da Pandemia) ou D.P. (depois da Pandemia). O normal pra mim é fugir, das pessoas, das tarefas, dos medos, das inseguranças, da  ansiedade, da baixa auto-estima. Fugir sem sair do lugar. Petrificado pelo que as pessoas insistem em dizer que é normal e o que não é normal, ou ainda no que ela insistem em ser o velho normal no novo normal

A Pandemia hoje petrifica pessoas, embota mentes com rotina, cria calos nos hábitos, deixa os jovens com reumatismo, ela desafia a gente a fugir sem sair do lugar. Por muitas vezes eu joguei a toalha para este desafio. Dizia Guimarães Rosa e dizia minha mãe: “A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. 

Hoje é Domingo, hoje é Agosto.  

1.8.20

Dia 137: por Ana Dos Santos

Acordei no meio de um sonho molhado... estava quase chegando lá...

Escuto o primeiro ônibus do dia passando, devem ser 05h00min, o motorista e o cobrador com certeza acordaram as 03h00min e já estão trabalhando. 

No meu privilégio de poder trabalhar em casa, viro paro o lado e tento dormir. Mas começo a lembrar da minha tripla jornada de mãe, dona de casa e professora. Ah, tenho que revisar um artigo pra pós, que parou também por conta da pandemia... Então, distribuo mentalmente as tarefas como: prioritárias, urgentes e “faço quando der”!

Abro os olhos, uma lagartixa está subindo pela parede... Eu também!

Assim como uma grande parte das pessoas ao redor do planeta, eu finjo que a vida agora está no “novo normal”. Me conecto ao ciberespaço, abro meus e-mails:
- Sôra, desculpa por não fazer o trabalho, é que fui assaltado ontem e levaram meu celular, não sei quando vou ter outro...
- Tudo bem, Breno, eu aguardo. Como você está? Te machucaram? Cuidado com a violência e cuidado com o vírus também!

Eu ia escrever “Fica em casa!”, mas lembrei que assim como ele, muitos alunos precisam trabalhar, pois os pais foram demitidos quando essa tragédia mundial começou. A exclusão digital está afastando um grande número de alunos da escola, assim como outros que devem ter se contaminado ou tiveram que cuidar de alguém doente na família.

Hoje já se passaram quatro meses de pandemia do Corona vírus, e eu permaneço em isolamento social. Já perdi duas amigas para o covid-19. Não pude me despedir. Também conheço outras duas que se contaminaram e conseguiram se curar. Lembro que a Rosa que está há uma semana com o teste positivo... sinto medo, começo a chorar....aproveito para chorar também por outras dores e perdas.

CAFÉ PARA CONTINUAR!
Vou ler as notícias, nada mudou!
Infelizmente o número de mortes continua crescendo: 90.000 pessoas!
Nossos governantes continuam mentindo e roubando o dinheiro do povo. 
Nada mudou!
SINTO FALTA DE AR!
NÃO CONSIGO RESPIRAR!
Já tive a impressão de que me contaminei 1000 vezes, mas limpei tudo há tempo.
SINTO FALTA DE AR!
NÃO CONSIGO RESPIRAR!
O racismo no Brasil continua matando pessoas negras a cada 23 minutos. Sempre sou seguida pelo segurança do supermercado, agora, com minha máscara, “Aqui estou, mais um dia sob o olhar sanguinário do vigia”.
CAFÉ PRA CONTINUAR!
SINTO FALTA DE AR!
NÃO CONSIGO RESPIRAR!
Estamos em 2021, mas nós negros, continuamos em 14 de maio de 1888.

Anoiteceu. E com os dias gelados, anoitece cada vez mais cedo. Troquei o dia pela noite.

Aqui na minha rua, depois das 20h não se vê uma viva alma, com exceção dos moradores de rua, que crescem em números exponenciais.

VINHO PRA RELAXAR!

Vou pra sacada no escuro. Gosto de observar os vizinhos. Já conheço suas rotinas e horários. Quando acabar esse isolamento, quero conhecer os que bateram panelas comigo quando havia esperança na justiça. Há dois meses as panelas silenciariam.

MAIS VINHO PARA RELAXAR!

Tem um vizinho no prédio da frente que gosta de tomar sol só de cueca. Ele também esquece a toalha quando sai do banho nu. Lembrei! Foi com ele que sonhei na noite passada.

A lagartixa continua subindo pela parede. Eu também!

31.7.20

Dia 136: por Loren Hofsetz

O dia D / Maio 2020

Depois de sessenta e poucos dias em uma casa, isolada do mundo, sem ter contato físico com ninguém ( ops! Desconsiderem o abraço com toalha que arranquei da minha irmã em meu níver ) escutei a frase: "Hoje é você quem sai, Loren. Com 60 dias de casa. Você é a mais nova portoalegrense a pôr os pés na rua." Quem me recebeu? A Bruna Casagrande, ou Bruna Leifert, me acolhendo e mostrando o novo normal que vivemos.

Foi louco tudo isso, eu me achando centrada, me vi assustada já imaginando os outros que não se cuidam. Levei até álcool gel e um frascão de líquido 70 em spray para colocar na sola dos sapatos e não sujar o ambiente onde iria... usando viseira e tudo, pronta para sequenciar o DNA do vírus. Estava muito “bem vestida”, a secretária nem me reconheceu quando eu cheguei. Aliás percebi que a gente até desconsidera a vaidade e tenta suprir a esquisitice da vestimenta com conversa inteligente e simpatia, e olhe lá. Na verdade, também me dei conta que essa minha nova versão prefere ficar quieta, porque, quando a gente troca um "oi" com alguém, o ser logo se aproxima pra conversar o que, obviamente, ocorreu. Logo depois que cheguei ao estabelecimento, entrou uma mulher charmosa, com uma faixa de tecido amarela e máscara da mesma cor abotoada na própria tiara, contrastando com a pele negra. Linda! Eu cheguei com viseira, com a cara de quem iria fazer a cena de “Flashdance”, mas a versão da escola, no sexto ano do primeiro grau* e na aula de educação física. Cara evidentemente preocupada com a coreografia, porque estava com olhos arregalados. Ela não, ela cheia de sorrisos. Olhos sorrindo, quase gargalhando. Expressivos. Foi bom ver alegria plena e beleza nessa nova fase, pois me fez relaxar e comentar sobre sua proteção, aliás... meu vacilo. Pra que? Por que não fiquei em silêncio? É claro que ela se virou em minha direção, eu sentada, e começou a se aproximar, falando. Eu quase saí correndo pela porta da frente, mas cruzei as pernas para deixar uma distância, mantendo a histeria elegante, mesmo com o aparato no nariz e na boca, e só faltou me deitar na cadeira para chegar a 1km de segurança. Daí conversamos, mas ela logo se afastou, aleluia, para mostrar os acessórios de proteção à secretária.  A mesma estava alucinada, passando jatos de álcool 70 na bancada, depois de ela eu termos estado. Serviço inútil, porque a mulher pôs a bolsa no local, tirou umas máscaras fechadas e começou a mostrar... ( eu imaginando a dança debochada do Corona pra gente.) 

Por sorte, naquele momento, essa paciente foi chamada e eu respirei, aliviada, pois agora estavam na sala de espera apenas eu, as bactérias dos sapatos e alguns vírus de outras gripes... e claro, a secretária obcecada com álcool gel. Então relaxei e, quando fui pensar no que iria comer (porque a pandemia me faz pensar muito sobre isso), lembrei que estava no dentista. Que teria que abrir a boca pra ele. Mil vezes um ginecologista a essas horas. Mil vezes! Eu até protelei a consulta, mas era preciso e, aliás, pensando bem, foi ele quem me tirou da casa!!!!!! Fiquei mais tempo, porque conquistei a simpatia do meu sofá, mas bastou eu falar que faziam meses que a gente não se via, então ele me chamou. Fiz ele lembrar de mim... Ah esses amores mal resolvidos... Capaz, ele é bem casado e a mulher é um amor. Foi necessidade mesmo. Óbvio que subi as escadas quase levitando pra não encostar em nada, tudo branco, falsamente puro, me iludindo, mas eu já estava me distraindo, porque mentalmente estava obcecada na torcida para o dentista estar com viseira. Surpresa!!!! Estava Sem! Estava apenas com uma máscara da 3M, como eu, entretanto a dele superior, não a da alta voltagem dos hospitais, mas daquelas bem boas. Entrei na sala quase acuada e logo ele passou álcool nas mãos, aquilo foi impactante, quase me desarmou, tremi de desejo, pedi também, fissurada, e ele claramente percebeu o meu vício, mas rapidamente colocou as luvas e me chamou para a cadeira dele. Frio. Assim... sem perfumaria. Eu precisando tirar a máscara de supetão, como se eu tirasse sutiã na frente de um amigo e ele ali... só esperando. Eu nunca tirei sutiã na frente de um amigo, a propósito. Talvez em um camarim... por causa da troca do figurino de ópera, sei lá... Voltando à cena. Antes de tirar, fiz aquelas perguntas de virgem na primeira noite, "Está com camisinha?", " Trouxe pelo menos?", "É pra usar", "Não. Não é negociável!" ... Tudo ele disse sim. Averiguei se era verdade e se tudo estava esterilizado, não pude verificar a qualidade da máscara, iria contaminar, mas cuidei tuuudoooo o que ele fazia. Até perguntei se o pano branquinho onde ele deixou os instrumentos havia sido trocado. "Trocou o lençol?". Enfim, quando me acalmei, tirei o aparato e me deitei rapidamente, abrindo a boca e fechando os olhos, eu não sabia o que veria. Claro que ele me viu como inexperiente, pois logo veio a pergunta: "Que que tu está fazendo? Preciso te perguntar algumas coisas." E eu, em pensamento... "Não fala nada. Fica em silêncio. E se as gotinhas de saliva saírem pela máscara????" Mas olhando ele e vendo que sabia o que fazia, deixei a Loren sensata, a experiente, a resolvida e audaciosa chegar e fingi que ele dominava a situação: "Me diz que faço tudo direitinho... como tu preferir. Apenas hoje." 

No final das contas deu tudo certo. Foi rápido e ainda bem, porque fiquei esgotada de reaprender a sair de casa, entretanto depois foi tão tranquilo que deu até aquela sensação de normalidade. A nova realidade só se escancarou quando eu abri uma nova máscara, peguei novas luvas, pus a viseira, me ESQUISITANDO para sair da sala do dentista e estanquei na porta, pensando se pegaria na maçaneta para infectar minha luva, então fui rapidamente socorrida por ele, que abriu a porta para mim como me dando as boas-vindas ao novo mundo, espontaneamente me dizendo que eu me adaptaria rápido. Que daria tudo certo. Mesmo assim os meus olhos arregalados voltaram, ainda que eu tentasse fazê-los sorrir e o sorriso falso não apareceu, pois estava coberto com máscara. Felizmente, segundos depois, eu acreditei no dito e veio a alegria real. A sensação de segurança por ele ser super cuidadoso e eu aprendendo a confiar que me cuidando não teriam problemas. Quase o abracei. Que susto.
  
Então deixei o consultório feliz, realizada, porque nós todos ali nos cuidamos e estamos nos adaptando, mas bastou sair na rua e lá estava o povo portoalegrense sem máscaras... afff, por esses, uso viseiras. Não dá nem pra olhar no olho, provavelmente virá uma pergunta: "Onde fica a rua tal?" Então, pra não sair correndo, aproveito a defesa acrílica, me precavendo de perdidos de logradouros alheios. 

Boa sorte ter a Bruna me esperando. Cheguei sã e salva em casa. Lógico que aí veio outro capítulo... o chegar em casa... mas é para outra história. Já devo ter esgotado quem chegou até aqui, e que talvez entenda essa nova fase vivida depois de tanto tempo reclusão. Faz parte. Vamos nos adaptar e viver a nova normalidade. Acessórios obrigatórios na cara e na bolsa. Para a troca. Sacolinha para descarte dos EPIS também, para não expor os coletadores. 

Boas vindas novos tempos!!!! Que passe logo a pandemia!!!! 

PS: Com "água sanitária" não se faz enxágue bucal só porque o dentista, COM máscara, falou na sua cara enquanto lhe atendia... portanto, não faça isso, pois "pode queimar" a língua. Queime a língua de outras formas, comendo brigadeiro quente, por exemplo. 
PS2: *Sexta série se usava no século passado. Fazia parte do hoje chamado ensino fundamental. Wikiloren

30.7.20

Dia 135: por Caue Fonseca

O charmoso ancião aqui de casa marcou presença no casamento dos meus pais. Não como convidado, mas como parte do enxoval. Trata-se de um fogão Brastemp Luxo amarelo baunilha, do tempo que o logotipo da marca ainda era um esquimó arrastando um trenó. Com a ascensão do movimento hipster, o amarelão se tornou a estrela da minha cozinha. Costumam perguntar se ele é antigo mesmo ou um modelo vintage, tal a belezura do coroa.

Ali por meados de maio, após mais de quarenta anos de idas no sentido horário e vindas no anti-horário, um dos botões girou em falso – não à toa o mais usado, correspondente à boca inferior direita. Constatei, desolado, que uma parte interna havia se quebrado. Com massa epóxi e um pouco de engenhosidade, um curativo foi improvisado enquanto aguardamos na fila do transplante – o kit de seis botões originais sai por R$ 82 no Mercado Livre.

A peça do fogão de duas gerações não foi a única vítima material do coronavírus. Somente na cozinha, a porta do freezer, muito mais jovem, de uns meses para cá deu para se abrir quando a geladeira é fechada com muita força. Novamente improvisei. Em vez de borrachas novas, a porta do freezer agora é mantida cerrada por uma tranca para bebês. Tumelero.com. Chega em dois dias e tem frete grátis acima de R$ 150, então comprei junto uma luminária.

O insight mais óbvio desses meses de reclusão é de que não somos feitos para ficar tanto tempo em casa. Mas venho sendo lembrado do oposto: nossos lares também não são feitos para nos suportar por tanto tempo. Nem a mobília mais nos aguenta.

Porque tudo bem girar por quatro décadas de almoços. Mas não há botão que aguente quatro meses de idas e vindas para toda e qualquer refeição, do ovo cozido matinal ao chá de camomila noturno. O robozinho aspirador está coxo: a escovinha esquerda às vezes para. Tendinite, de certo. As lixeiras também desistiram. A da cozinha parou de responder hoje ao comando de abrir a boca ao receber um pisão. Fez um movimento parecido com um dar de ombros e se manteve fechada. É o mesmo defeito da lixeira do quartinho, a de recolher torrões de xixi de gato.

O gato, aliás, ontem olhava desolado para a pia que há 13 anos serve de bebedouro de água corrente. Havia ali uma pequena piscina. Mesmo com bem menos cortes de barba do que o normal, o encanamento enfim entupiu. Tentei abrir os metais debaixo do balcão para limpá-los e descobri uma estrutura completamente apodrecida. A substituição vai depender da agenda do faz-tudo aqui do prédio que, pudera, está assoberbado de trabalho.

E há ainda os móveis e itens de decoração vítimas inocentes do meu tédio. Porque tudo bem aquela colcha manchada no quarto de hóspedes, mas ele agora serve de escritório, e não quero olhar para a bendita mancha todos os dias. A falta de uma das folhas da persiana seria quase imperceptível, não fosse a nesga de sol que passa pela fresta e atinge exatamente o meu monitor. Já essa cafeteira de R$ 89 trabalha bem, mas talvez seja a hora de uma funcionária que já me desperte com o café passado. Amazon.com. Pesquisar.

Não, espera. Certamente algo vai se quebrar e precisará ser substituído.

Será a mola do sofá? O teflon da frigideira? Impressão minha, ou o lado esquerdo do fone de ouvido silenciou? E esse controle remoto, será a pilha ou o botão? Como eu nunca havia reparado no frio que entra pelas frestas dessa janela? Qual é o melhor modelo de aquecedor? YouTube.com. Pesquisar.

A cada dia entendo um pouco mais os presos que queimam seus colchões. Mais alguns meses, e restaremos eu, a fatura do cartão estourada e um impávido jogo de duraléx.

29.7.20

Dia 134: por Clarice Nilles

música que estou ouvindo agora: Thiago França — Pescoço Curto


não fiz muita coisa hoje. um pouco abalada pelo dia anterior, talvez. ontem ia acontecer uma live no meu instagram, eu estava nervosa, entusiasmada, confiante. aconteceram alguns problemas técnicos e uma tal de auto sabotagem e no fim não teve live. aprendizado, espero? se tem algo que quero explorar, depois de tanto não aceitar o isolamento, é o sentimento de estar viva. e após questionar-me se não era coisa de Milleniun e heavy user das redes sociais, descobri que compartilhar faz com que eu me sinta viva. então entrei num ritmo, com ajuda dos elogios e apoio de alguns amigos que antes nem sabia serem tão precisos assim, de fazer lives, músicas, textos…e postar tudo nessa grande exposição que é a internet. numa lógica de fazer despretensiosamente com pretensão, ou seja, sem muitas noias, filtros ou pré-julgamentos, mas fazendo de um jeito querido e realmente querendo. sem muita elaboração, às vezes até me pergunto se não estaria “queimando meu filme” ao mostrar coisas que não estão necessariamente prontas ou são apenas o inicio de um estudo. vem aquelas vozes infantis perguntando o que a Luiza vai pensar ao ver este meu projeto. ou o Vitor, ou o irmão do Vitor, ou a Fernanda. Graças ao meu processo na terapia, tenho lembrado — a tempo suficiente — de pensar o que os meus amigos achariam disso. É bom lembrar daqueles que apoiam o nosso ser e estar no mundo. Eu faço por importar a mim principalmente. Acho que se algo toca e emociona uma pessoa, já faz sentido. Duas então, já forma um par. 

Realmente, iniciei o dia de hoje achando que não teria muito o que fazer e, já gostando da ideia, aos poucos fui descobrindo uma pá de coisas que havia anotado mentalmente ou em post its e deixado para depois. não fiz, comecei a fazer e me distrai, troquei de tarefa no meio. geralmente é isso, difícil de ficar com um foco apenas durante toda uma tarde, um dia, que dirá uma semana ou uma escrita de diário. aliás, é de se celebrar: desceu a minha menstruação hoje e me pergunto em que fase a Lua está. menstruação tá muito alinhada com os ciclos naturais. tive uma boa conversa com a mãe, ficamos refletindo sobre a passagem do tempo na vida de cada um. nos seus 61, ela diz que é como se a casca, o externo, envelhecesse mas, no interior, segue aquele âmago profundo com vitalidade e sensibilidades que identificamos como “eu” desde a adolescência. diz que hoje guardou um tempo para observar as nuvens, e identificou imagens nelas assim como fazia aos 15 anos de idade em Gramado. me passei rindo na conversa, para no fim chorar de mansinho e muito em meu quarto. parece que as emoções vão se desbloqueando todas juntas. talvez seja bom, ultimamente estou cansada de pensar e tentar racionalizar tanto. pior ainda quando tento entender ou interpretar o outro sem antes mesmo perguntar o que eu penso daquilo. se quero ou não quero, gosto ou não, e todas as nuances aí no meio. acabei de pesquisar aqui, estamos na Quarto Crescente. que encantável ironia, talvez este seja um bom momento para expandir. só quero poder celebrar o que resta, o que existe e o que surgirá. (boa sorte)

28.7.20

Dia 133: por Laura Peixoto

Preciso contar pra alguém. O Cirilo veio aqui ontem à noite. Juro. Escondido, claro. Aproveitou a noite úmida e quente, viu a janela aberta e não hesitou. E eu também não. A gente se curte, nunca escondi meus sentimentos. Da cama, percebi quando chegou. Meu sorriso cúmplice tranquilizou sua audácia. Sabe como é... Vidinha confinada esconde algumas petulâncias. Cirilo se acomodou  na minha cama e eu deixei – mesmo com medo de alguma possível contaminação. Suspirei. Ando carente. Ele também. Algumas carícias e Cirilo deixou escapar um ronron satisfeito entre os bigodes. Vadio, partiu antes de eu acordar. Mas pelo menos relaxou a tensão que a semana promete.

27.7.20

Dia 132: por Rochele Bagatini

Centésimo trigésimo segundo. Houve um vácuo de palavras desde que escrevi um diário a respeito da pandemia, um dia remoto, no início dela, entre o vigésimo e o trigésimo. Lá ainda curtia uma espécie de parada, algo como se fosse possível parar a vida. Como se fosse possível esperar pelo fim da pandemia, como se a vida não estivesse sendo vivida com todas as suas nuances, algumas mais vívidas ainda. Não sinto mais o momento de transição, aquela sensação do vigésimo está perdida. A vida continuou seu fluxo, e eu acabei conhecendo mais em cem dias do que conheci em anos. Conheci mais sobre mim, meu companheiro, meu cachorro, meus pais (ao longe assumi a função de tentar informar melhor e monitorá-los, justamente porque não podia estar perto, e provavelmente porque a impossibilidade de visitá-los fez brotar o remorso por todas as vezes que não fui vê-los). 

Voltando ao diário depois de cem dias e parece que nem estamos mais “em plena pandemia”. Meu coração já não está mais pleno de pandemia, já não penso tanto nisso, nem atualizo o número de mortos. Eu nem sei mais o número de mortos, isso é vergonhoso? Impregnei o tempo da pandemia plena em tempos meus. Polarização: tempos coletivos, tempos nossos. O barulho dos carros nas ruas, as vozes, a agitação.... É muito mais fácil para mim que estou no alto das nuvens, na minha própria montanha mágica. Eu, por mais que no início tivesse indícios de que as coisas seriam difíceis, quase nada lamento até agora. Mas não chego a sentir saudades da pseudo-plena, tenho compaixão. E aqui do alto parece ainda mais que o tempo passará rápido, levando tudo o que se criou: virão outros tempos, de outras pessoas, de outras pandemias, a ocupar a mesma montanha.

A vida não parou: fui pedida em casamento em plena pandemia. Fui pedida em casamento num dia chuvoso em que ele me levou clandestinamente até aquela ponte e, depois de uma hora no carro, com a desculpa de que queria me fazer uma surpresa por nosso um ano e meio de namoro, me conduziu até o alto do pórtico de Nova Petrópolis, onde há uma passarela maciça, imitando uma torre. Ali, com trilha sonora de um ou dois carros que passavam pela estrada abaixo, retirou uma carta do bolso, leu com a voz tremelicosa, se ajoelhou com uma caixa de anel aberta, e me pediu em casamento. Nenhuma testemunha. Duas aves passaram granindo um diálogo, se eu fosse mística diria qualquer coisa de sagrado, mas acho mesmo é que nem nos perceberam. Nós passamos um tempo entretidos com elas, agradecendo sua companhia. Foi o centésimo vigésimo dia da nossa primeira pandemia. Dia pleno de comoção e deslumbramento.

Comecei a plantar lá pelo vigésimo e depois das primeiras colheitas de rúcula e de cenoura, fiz curso de plantio em pequenos espaços na Embrapa, fiz curso de Permacultura no IPEP, participei de lives de agricultura, adquiri sementes orgânicas, e estou plantando, na minha mini sacada, sementes em consórcio (couve-manteiga, lavanda, abobrinha, hortelã, coentro, moranga, feijão-branco, tomate-cereja, manjericão, manjericão-roxo, morango, alecrim). O modesto plantio inicial transformou-se num plantio variado de experiências e numa perspectiva pós-plena de ter uma estufa em algum lugar do interior, longe o bastante para me abrigar na próxima pandemia e, quiça, produzir comida para mais pessoas. Fazer a revolução no campo. Em pleno delírio. 

Agricultora ou escritora? Uma amiga disse: “a arte nunca foi tão necessária como agora, ontem li um conto teu e a leveza dele me fez sentir bem, tem que escrever mais”. Só penso que contos meus com leveza são raros, será mesmo que devo escrever? Devo concordar que parece mais claro ainda que ler (e como tenho lido nesse momento!!) dá um sentido de estar me movendo neste tempo, mesmo que esse movimento não me leve para lugar algum, a não ser para a morte. Mas, se não existe lixo, se nada vai embora, nem mesmo eu posso ir embora. A morte é só do corpinho como ele é hoje, e da alminha, tão frágeis como o vírus que morre com sabão. 

Gotejam trabalhos e estudos on-line. Aprofundei-me nos estudos sobre o colonialismo em Moçambique. Fiz um trabalho para o portal SAS de Educação sobre o livro Caderno de memórias coloniais que estreou no vestibular da UFRGS. Li também Os cus do Judas e Niketche para o grupo de estudos, livros que tratam do violento colonialismo. Não importa se o homem é negro ou branco, colonizador ou colonizado, a violência sexual contra a mulher ocorre independente da raça. Ocorre independente dos limites geográficos, europeus ou africanos, tanto nas questões de assédio quanto no que tange os julgamentos preconcebidos sobre o papel da mulher. Às vezes acho que acordei muito tarde para esses assuntos, mas ficar dormindo não é mais uma opção.

No meio dos cento e poucos dias, confesso: precisei ver meus pais e receber meu irmão. Digo “precisei” para suavizar o delito. Como é que se faz para estar com as pessoas e não tocá-las? Não tocar é um pouco como não ver, porque vemos quando as peles se tocam, quando sentimos o coração delas batendo, quando sentimos seu calor. Quantas palavras a mais são colocadas no lugar do toque? Mas eles, a quem achei que deveria dizer como se cuidar, se lavar e como não transmitir... eles lá, tão adultos, fortes e conscientes, saudáveis, emocionados. Infecção afetuosa plena. 

Tenho ainda coisas a desenvolver neste diário, como o episódio da segunda temporada de Cosmos, o sétimo, que trata das geniais abelhas, e como elas me tornaram menor e melhor. Também quero contar sobre ter parado de tomar medicamentos, e sobre ter aprendido culinária circunstancial, mas nada disso precisa ser dito com pressa, talvez mais cem dias de tempo e espaço e os assuntos fermentem. 

Parece-me que a única plenitude é a contingência. 

26.7.20

Dia 131: por Leandro Ayres França

A utopia é a pior inimiga do solitário. da solidão. Não lembro a frase exata do autor. Mas a grifei no livro. Penso nisso enquanto olho para uma cidade adormecida ao pleno meio-dia. E, enquanto penso nisso, me pergunto se é assim que uma cidade sonha. E, enquanto me pergunto isso, penso o quanto é curioso eu me lembrar de citações de livros no meio dos sonhos. Hoje é o centésimo primeiro dia de quarentena. Não deve ser. Não estou contando. Só nos filmes se contam dias de quarentena (e presos riscam os dias nas paredes da cela). Mas, parece que um registro de quarentena só faz sentido a partir de uma centena.

No início, estabeleci uma rotina rígida. Acordar. Passar o café. Ler por uma hora. Passear no parque. Resolver trabalhos menores. Lavar a roupa. Almoçar. Dieta controlada. Ler trabalhos acadêmicos. Passar o segundo café do dia. Fumar um cigarro. Verificar as correspondências. (ooi) Fazer exercícios. Caminhar rumo ao pôr do sol, pela orla do rio. Preparar um lanche. Passar mais um café. Lavar a louça. Acender um cigarro. Estudar. Preparar o jantar. Reduzir o consumo de carne. Verificar as mensagens. Arrumar a cama. Ouvir música. (tu gosta da carreira solo do thom?) Adormecer. Repetir. Um regime de isolamento autoimposto e disciplinado. As poucas notícias que eu lia com atraso davam conta da disseminação do vírus. A humanidade apanhando de um agente invisível e sem bandeira, obrigada a se recolher sem qualquer outra estratégia à disposição.

Mas não era do vírus que eu me refugiava ao estabelecer a rotina de um autômato. A assepsia era emocional. Quando as pessoas começaram a extravasar suas reações numa livemania incessante, me desconectei. E desconectado foram se fundindo sonho e realidade. Porque, além das citações de livros, sonho com ambientes vazios de móveis e pessoas. (isso é sinal de psicopatia) Caminho por amplos apartamentos, edificações abandonadas, escadarias de diferentes formatos me conduzem a outros andares e cômodos desabitados, portas me introduzem a espaços distintos, vez ou outra na companhia dos meus cães. Às vezes faz sol no quintal de uma casa, na maioria é noite úmida de verão numa metrópole pouco iluminada. No fundo, a cidade foi feita para se tornar ruína. Essa é outra citação que me ocorre. Na maioria dos sonhos, caminho com familiaridade por edificações desconhecidas. Raras vezes, identifico prontamente o lugar, como há poucas noites quando sonhei com o meu próprio prédio, abandonado, saqueado e com as vidraças todas estilhaçadas. São sonhos mudos e, nas muito raras ocasiões em que sou surpreendido, sem alarme, por alguém, faltam-lhes voz. (achei curioso o fato de tu receber cartas em sonhos?) São mensagens, não cartas. (eu adoro terminar afirmações com interrogação) Tem uma diferença aí: cartas pressupõem carteiros e eles não aparecem nos meus sonhos. Não me lembro de alguém ter me contado que sonhou com um carteiro. Dias desses, ia perguntar isso para a Julia. Se ela já tinha sonhado com um carteiro. A pergunta engasgou porque logo ela me convidou para escrever. O registro num diário da pandemia. Engoli a pergunta e a recusa. Vou tentar. Se tivesse uma filha, se chamaria Julia. Engoli também esse comentário. (ah, uma pergunta importante: assistiu anima?)

Há dois meses, sonhei que estava no parque. Reconheci o lugar. Por isso o artigo definido. Céu limpo e frio, típico das manhãs de inverno em que o sol parece mais um reflexo. As duas cadelas disputavam galhos secos. O terceiro, mais velho, à sombra de uma árvore, contemplava distraído e sereno o mundo, um tanto aborrecido com a agitação das duas. Ela se aproximou e se sentou ao meu lado. (tu é paulista?) Num breve romance de sonho, partilhamos informações sobre nossas vidas. Eu sei, é título de um livro. (achei uma bela coincidência) Na despedida, trocamos os nomes. Anotei uma mensagem: Hoje conheci a B. O sonho se repetiu. Outras manhãs. Nos reencontramos sem combinação. E, por vezes, nos perdemos. (ontem de manhã, por sinal, procuramos vocês) O diálogo é retomado no exato ponto interrompido. (ba eu acho sagita meio complicado) Seis planetas em sagitário. (mas na vdd tu não parece ser assim) Sentamos, cada encontro, mais próximos. Me ocorre que tudo isso acontece à moda antiga. (estou lendo Gabo) Cem anos? (amor nos tempos do cólera) Quantos anos eles demoram pra ficar juntos mesmo? (são décadas) Deduzo que não estamos indo tão devagar assim. (tentando tirar uma música no uke) E ela me envia um arquivo de áudio. Isso me parece romântico e antiquado. Em plena distopia pandêmica, somos fora de moda. Quero encaminhar para alguém, mas os sonhos são desocupados. Exceto, agora, por ela. (faz meses que tô com insônia) Lembro-me daquele livro em que uma mulher deixa de dormir. Ela cita um trecho de outro Muramaki Murakami. Hakuna Matata. Sempre erro a grafia. (o incolor tsukuru) As manhãs se repetem, se confundem. (eu talvez possa ter te mencionado pra minha terapeuta) Sorrio, mudo. Compartilhamos nomes de filhos. Sonhamos dentro dos sonhos. Tipo Inception. Martina, Artur. E Julia. O mundo parece encolher. (eu preferiria o almoço contigo) E então almoçamos. E nos beijamos, enquanto os cães brincam embaixo da mesa. (foi meu jeitinho de dizer que quero ir na tua casa logo) No sonho seguinte, abro a porta e a deixo entrar. Nos lábios, dois mundos colidem. Sonho e realidade se fundem.

Já não consigo distinguir os dias da semana. Parece domingo, mas todos os dias se parecem domingo. Se for, explica a cidade assim adormecida. Fugir do mundo só tem sentido num mundo imperfeito. Me ocorre essa citação. Enquanto penso nisso, sinto a presença de mais alguém na cama. O cômodo todo vazio, uma manhã confortavelmente muda. No rodapé do diário, anoto o nome da destinatária. Lanço um último olhar para a cidade, satisfeita por se ver livre de seus habitantes e poder ser, enfim, apenas concreto. É outra citação. E já não sei se sonho.

25.7.20

Dia 130: por Marcela Donini

"Mãe, como o tempo passa?"

Hoje, 25 de julho, faz 132 dias que eu não olho mais o app de previsão do tempo. Eu sei o que vem no dia seguinte: acordar, tomar café, fazer a mamadeira, brincar, requentar o café, brincar, cozinhar, almoçar, trabalhar e trocar de turno com meu marido, que, à tarde, passa a ser o responsável por corridas fantásticas e criação de cidades imaginárias. Tudo dentro de casa.

"Do que a gente pode brincar agora? Tem uma ideia nova?"

A chegada do Santiago, três anos atrás, me ensinou muito sobre gestão do tempo. Uma criança é uma âncora no presente. Não há nada mais urgente do que barriga vazia ou fralda suja. Talvez a falta de atenção.

"Se não parar de trabalhar, seu computador vai queimar, mamãe."

Somos dois adultos trabalhando em um apartamento onde o escritório é na sala, conjugada com a cozinha, e onde fica a única TV da casa. Santiago, antes na escolinha, nunca passou tanto tempo conosco, mas também nunca passou tanto tempo com um de nós presente mas dedicado a outra atividade que não suas demandas.

"Quantas horas é sete, zero, dois?"

Um estudo de 2017 da Universidade da Califórnia, em Irvine (EUA), diz que levamos 23 minutos para voltar nossa atenção a uma atividade interrompida por fatores externos.

"Mãe, onde tá o Foléti?"
23 minutos.
"Olha, mãe, achamos o parafuso verde que faltava pra montar a escavadeira!"
Mais 23 minutos.
"Mãe, você viu que o Rider chamou só o Rubble e o Chase pra essa missão?"

E lá se foi mais de uma hora do expediente, normalmente compensada à noite, depois que Santiago vai pra cama. Quando também temos a chance de ver um episódio de alguma série, de preferência curto para não sacrificar muito o sono.

"Hoje eu vou ficar acordado a noite toda!"

É verdade que, como tudo na vida, me acostumei a dividir a atenção entre meu filho e o trabalho durante o trabalho. Meu tempo de retorno à atividade interrompida é cada vez menor. Além disso, às vezes, uma gargalhada ou uma cafungada no cangote pós-banho no meio do expediente são pausas muito bem-vindas.

Às vezes, não.

Às vezes, há tensão. Ansiedade. O ciclo. O noticiário. Autocobrança. Estresse. Falta de paciência. Culpa.

Num desabafo dia desses, minha mãe acolheu meu sofrimento com a exaustão do combo home office + criança + pandemia + trabalhar com notícias. Mas me disse: "tu não tem que te culpar por trabalhar", conselho que eu já tinha lido num livro da Chimamanda Ngozi Adichie, mas que ganha mais força quando vem daquela que é a minha referência de maternidade. A dedicação ao meu trabalho é um valor que quero passar ao meu filho. Mas também quero ensiná-lo que há muitas outras coisas importantes na vida, como ele vem me ensinando.

"Para de mexer no celular, mamãe."

Santiago não só é uma âncora no presente mas um lembrete de que, por mais brutal que seja o coronavírus, a vida não foi suspensa como dizem por aí. Houve mudança de rota nos planos, é certo, ainda estamos fazendo ajustes.

"Mãe, larga esse celular!"


Mas a vida segue, e vai bem para nós. Ainda que nos falte poder "sair para qualquer parte", temos renda, casa, comida e até diversão e um pouquinho de arte. Nesses mais de 4 meses de isolamento, já comemoramos dois aniversários aqui em casa, o veículo onde eu trabalho cresceu e lançou novos produtos, e Santiago desfraldou e está aprendendo a ver as horas. Logo vai entender a diferença de urgência entre a pauta do dia e o parafuso perdido da escavadeira de plástico.

Vou poder, enfim, dizer para ele o que ele já me diz, em outras palavras:

"Algumas coisas podem ficar para amanhã".

Especialmente, se o amanhã for um domingo sem plantão.

24.7.20

Dia 129: por Patrícia Viale

Casa 246

Um chamado de vida e morte nos colocou para dentro de nossas casas. Abro as janelas todos os dias da casa colorida 1579, em São Francisco de Paula. Não só para arejar, mas para mirar ao longe. O que vejo ao olhar pela janela em pleno abril? Nada. Nada de movimento, além do próprio ar em respiração.

Pressinto uma vida transparente, que não se toca, não se cheira, não se vê. Mas se sente. Como este sol de abril se despedindo do verão tardio. Um sol que não queima, não maltrata. É somente uma luz muito forte. Luz que remete a outro tempo, outra casa. Um olho de criança. Arregalado. Era assim na janela do meu quarto de infância, na avenida Palmeira, número 246, bairro Petrópolis, Porto Alegre. Casa que voltou neste chamado de vida, em 2020.

Lá eu nada sabia, nem via. Eu sentia, como criança, em família grande. Meu mundo, no mundo de tantas pessoas maiores que eu. Não cresci pela cidade. Cresci no quintal com abacateiro gigante. Cresci vendo a avenida comprida com cinamomos. No quintal corri de marimbondos furiosos. Na avenida, das guerras de bixiguinhas do meu tio e seus amigos. A vida cabia, naquele sorriso de pessoa pequena, querendo crescer no ritmo das primas mais velhas. E tudo deixou de caber quando a mãe, que era brilho, e que era só da criança pequena e da irmã ainda menor, ganhou nenê e sumiu. Tempos depois veio mãe, de olhar tão baixo, e um menininho para casa. Tempos de portas fechadas, curativos e choros. 

E a linha do tempo se preencheu com mais mudanças, silêncios, gibis, livros e algumas brincadeiras. Veio óculos numa cegueira atropelante chamada miopia. Veio doença na perna, que não deixou a menina caminhar por um certo tempo. Apenas voar. Nada disto teve convite. Chegou como temporal. Mais um pouco e a menina embarcou num avião com aquele pai que era gigante e só se alcançava em colo, mãe que tinha duas mãos. A direita era da irmã e a esquerda do irmão, os dois pequeninos. A menina tão inocente, continuava sem saber nada, mas tinha óculos e o título de irmã mais velha. E lá foi a família conhecer terras de outros sotaques e sabores. Tudo tão perto, tão quente, tão distante. As pernas voltaram a caminhar. As asas foram guardadas. 

Não seria o vírus um chamado para redescobrir as tantas vidas vividas numa só? Nesta casa colorida bunker, de hoje, percebo que nunca mais fui na avenida Palmeira, nunca mais vi a casa branca, de quintal bom para correr. Neste abril de outono aquecido, um isolamento forçado me proporcionou tempo para rever fotos. Sem pressa. E lá estava a casa número 246, que tinha teto, tinha chão, tinha família grande, promessas de sonhos e nenhuma aversão à vida. Para tantos ter tempo é tédio. Para a menina, agora grande de tamanho, é ter linha de horizonte. Para tantos, exílio é dor. Para esta mulher é reviver. Esta pandemia que não reclama nada para o meu coração, nem urgência, nem transtorno, nada me pede, mas eu retribuo com palavras despertadas, com choros guardados, respirações contidas. E mais uma vez vivo na avenida Palmeira número 246, Porto Alegre, fugindo das bixiguinhas coloridas cheias de água e das bolinhas amarelas de cinamomo. A menina de asas retornou em plena época de amor.

23.7.20

Dia 128: por Rafael Balsemão

Súplica

Hoje acordei com o fantasma sentado no canto da minha cama, me olhando. Não foi a primeira vez.

Não sei precisar o exato momento em que ele se mostrou pra mim, mas acredito que tenha sido no dia 24 de março, quando, junto à última leva de colegas que ainda estava na redação, deixei o prédio do jornal em que trabalhava rumo ao home office.

É engraçado falar dele, porque nunca acreditei nessas coisas de espírito. Achava que, se um dia algo assim aparecesse, me daria um susto ou me mataria, como nos filmes de terror. Muito pelo contrário. Ele é puro silêncio. Teve um dia até que se materializou na forma do moço bonito que sumiu pouco antes da quarentena sem nem ao menos me dar tchau.

O primeiro mês em casa não foi fácil. O computador que peguei na empresa era lento demais, o que dificultava a lida diária. Fiz planos que me pareciam bem realizáveis. Ler alguns dos livros que estão na minha estante há tempos e que nunca foram sequer abertos. Zerar a caixa com todos os filmes do Hitchcock que ganhei há mais de uma década. Finalmente assistir à série Sopranos. Nada disso foi feito.

São problemas bem burgueses, eu sei, se comparados aos da maioria da população brasileira neste momento. Mas trabalhar com notícia me consumiu de uma forma que não sei explicar, o aumento do número de mortos dia a dia foi me deprimindo, deprimindo. 

O expediente acabava, e eu ia para o meu quarto praticar exercícios físicos - era só o que conseguia fazer. Lá tem um espelho gigante que uso para ver se o movimento está sendo executado da forma correta. Ali o fantasma apareceu várias vezes, quieto, me observando.

Enquanto levantava peso não era tão ruim assim a presença dele. Deve ter a ver com aquela substância boa que encharca o corpo quando praticamos esporte. O brabo era quando acabava, no banho. Não sentia medo, mas desespero. Não foi uma nem duas vezes em que chorei debaixo do chuveiro, soluçando. E ele sempre lá. Imóvel. Para evitá-lo em meio à frieza dos azulejos do box, cheguei a dormir sujo algumas vezes.

Passado um mês de trabalho em casa, fui demitido. Não foi inesperado, já imaginava que em algum momento aquilo pudesse acontecer. Rolou um pouco de preocupação por conta de grana, mas logo me dei conta de que aquilo não fazia mais muito sentido pra mim. Deixar o jornal até que foi simples. Difícil foi perceber a presença cada vez mais constante do fantasma por perto.

Engraçado, porque ele nunca aparece nos meus sonhos. Tem dias que vou pra cama por volta de meia-noite, esgotado, e o espírito está sempre ali comigo. Não me deixa dormir. Esses dias vi o sol nascer com ele do meu lado. Quando surge em forma de gente, até sorri pra mim, o desgraçado. Tem dentes bonitos.

Tentei aceitá-lo, enfrentar o monstro, como indicam os terapeutas. Quem sabe entender que agora ele faz parte da minha vida trouxesse algum alívio. Depois dessa mudança de atitude, até passei uns dias mais tranquilos, mas não adianta, é impossível se acostumar.

No meio de toda a desgraça, até tenho alguns momentos de felicidade. E é a essas pequenas coisas, quando consigo me desligar do noticiário e da contagem das vítimas, que tento me agarrar para seguir adiante. Isolado em casa, emagreci e passei a me alimentar melhor. Quase não tenho bebido. Finalmente consegui entrar para o grupo de pesquisa de um professor que tanto admiro da faculdade de Letras. Rolou até um trabalho super bacana nesse meio tempo, mesmo que temporário. Aprendi a rodar com o bambolê na cintura. Tomei coragem e puxei assunto com o rapaz poeta. Ele correspondeu.

Comemoro, sim. Mas não tenho paz. 

Os dias mais frios têm sido especialmente difíceis. Não gosto nem de lembrar, teve uma noite de domingo em que, enquanto lavava a louça, aquela água gelada acabando com a pele das minhas mãos, o fantasma apareceu. Não o vi. Só me dei conta de que ele estava ali - dentro de mim, ao meu lado, na pia, na minha roupa - porque senti minha respiração ofegante demais, numa ansiedade absurda.

Queria muito que o espírito fosse embora. Até cogitei propor uma troca: que o vírus viesse para substituí-lo. Mas com ele não há negociação. Amanhã vai fazer quatro meses que o negócio está comigo. Já pedi tanto para que ele vá embora. A merda é que não acredito em Deus, poderia rezar se fosse o caso. Nem isso.

Não aguento mais. Estou exausto. No meu limite.

Não sei se você gosta ou sabe ler, fantasma (ou sei lá o que seja você), mas se estiver aqui, acompanhando as palavras deste diário, por favor, vá embora.

Eu imploro.

22.7.20

Dia 127: por Antenor Savoldi Jr.

Não sei como vim parar aqui, mas deve ter relação com o fato de nunca ter sido capaz de manter qualquer tipo de diário. Nem mesmo agendas, aquelas com os dados pessoais na primeira folha, o calendário na página seguinte, e as demais divididas regular e meticulosamente em dias, as linhas indicando as faixas de horário, uma folha exclusiva para o planejamento antes de cada mês. Tenho diversas agendas iniciadas, o ano grafado em relevo na capa que imita couro, uma fitinha para marcar em que dia estamos. Uma agenda de 2013 poderia ser usada em 2019 porque os dias da semana e as datas coincidem – e tentei isso para evitar o desperdício de uma nova, havia uma daquele ano na gaveta. Mas para 2020, ano bissexto, a última agenda capaz de ser reaproveitada seria uma de 1992, essa eu não tinha, e tampouco comprei outra nova.

Nada disso vem ao caso, na verdade. As notícias da pandemia começaram quase que exatamente na virada do ano, e a curiosidade inicial foi se transformado ao longo das semanas em alerta, angústia, medo e enfim uma tensa resignação quando a quarentena tomou conta de nossos dias. Minha rotina não chegou a mudar muito, há uma tese de doutorado por ser escrita, intercalada pelos trabalhos de tradução e alguns textos jornalísticos originais, funções realizadas de forma mais ou menos solitária mesmo antes da pandemia. Porém, o recolhimento generalizado da sociedade prejudicou o bom andamento de uma rotina pessoal que havia sido alcançada com algum esforço, e que ganhava sentido no contraste com a velocidade das outras pessoas vivendo suas vidas normalmente no mundo lá fora, indo e voltando do trabalho, o horário de pico no trânsito e no supermercado. Uma vez que tudo isso foi paralisado, meu equilíbrio foi comprometido.

Mas só percebi o problema quando, mais uma vez, decidi iniciar um diário, já como uma tímida iniciativa para ter mais controle sobre os dias cada vez mais iguais e assépticos, aqui dentro e lá fora. Comecei com um caderno pequeno, brochura, de capa infantil, que encontrei na primeira ida ao supermercado durante a quarentena, momento de estocar mantimentos e materiais de primeira necessidade para enfrentar o apocalipse. Aproveitei as margens para colocar o dia do mês e da semana, e usei cada linha como um turno, onde indicava de maneira quase telegráfica a atividade naquela faixa de horário. Nos primeiros dias, as entradas se limitaram a coisas como “fichamento artigo”, “chamada gás” e “supermercado $148”. De maneira geral, cada página corresponderia a uma semana e, mais que um diário propriamente dito, o registro tinha uma função de agenda reversa, demarcando o que já havia acontecido sem nenhuma elaboração profunda a respeito – contrariando seu uso como ferramenta para reflexão, que costuma ser o principal argumento de especialistas para a manutenção de um diário.

Infelizmente, a empreitada logo foi abandonada. Dias depois, quando retomado, era preciso preencher os espaços retroativamente, em tentativas fracassadas de lembrar o que havia ocorrido em cada dia. Como estratégia de engajamento pessoal, comecei a anotar os filmes vistos quase que dia sim, dia não, um referencial que a princípio se mostrou bastante útil, mas também sem resultados práticos na efetiva manutenção do diário. A situação ganhou contornos dramáticos quando apareceram sinais claros de que eu estava perdendo a noção do tempo de maneira generalizada, colocando em risco compromissos com boletos bancários, prazos acertados e o próprio abastecimento da unidade doméstica. Era preciso insistir.

As páginas anotadas foram assimiladas a uma planilha de computador que servia como controle de custos, e vinha cumprindo seu papel com relativo sucesso. Adicionando um controle das atividades diárias em outra aba, qualquer omissão logo ficaria evidente, e poderia ser remediada. Apesar disso, a situação pandêmica limitou bastante também a frequência de despesas, cada vez mais altas pela inflação oportunista, mas concentradas em menos idas ao comércio – o que desafiava a própria confiabilidade de todo o projeto de monitoramento.

Não ter controle sobre os dias que passavam logo deixou os horários de sono e de despertar bastante acidentados, o que percebi quando acordei uma manhã com o barulho do interfone e, após censurar o responsável com um “já vou, mas isso são horas?” e lançar mão de todas as orientações de higiene e das melhores práticas de segurança sanitária, desci para atender um senhor de jaleco cinza que, após conferir uma lista em um formulário contínuo, desculpou-se dizendo ter errado o endereço, mas que já passava do meio-dia, e portanto não merecia tal tratamento. Concordei e lamentei o ocorrido, enquanto o fiscal – parecia ser fiscal de alguma coisa – se encaminhava para o prédio em frente, onde quem o aguardava era um vizinho que eu via pela janela toda manhã, em camisa social, tomando café, olhar sério enquanto examinava os papéis que sua impressora, também visível pela janela, cuspia em atividade ininterrupta.

Estava claro que o compromisso com uma rotina melhor exigiria disciplina e isso só seria alcançado com mais transparência e uma disposição mais clara de todas as atividades. Saídas com o cachorro, animal propenso ao sofrimento pela falta de rotina, passaram a ser registradas meticulosamente. As idas à farmácia, ao supermercado, ao açougue e à fruteira começaram a ser consolidadas em uma tabela, impressa e visível no hall de entrada. O consumo frenético de produtos de entretenimento de qualidade bastante variada, um dos pilares para a sanidade mental da quarentena, ganhou um espaço dedicado entre as planilhas, que agora além dos campos para o nome do filme, data em que foi assistido, diretor, e uma breve sinopse, ganhava um espaço para uma nota de avaliação pessoal, de 1 a 10, que logo se demonstraram bastante dependentes de aspectos externos à qualidade do audiovisual em si. A medida se estendeu para álbuns de música, séries e programas de televisão, e também livros lidos, que devido ao número muito menor na comparação com os demais produtos, ganhou tabelas específicas para indicar o volume avançado por dia, um índice que ganhava complexidade, uma vez que o número de páginas é inacessível em dispositivos eletrônicos de leitura, e seu percentual dependia do tamanho total de cada livro.

Mas também era fundamental, e isso logo ficou evidente, que tal esforço não comprometesse as atividades cruciais de escrita, tanto relacionadas à produção da tese, quanto às traduções e textos jornalísticos originais, categorias que ganharam os devidos monitoramentos em planilhas exclusivas para controlar a ordem e o avanço dos fichamentos, o número de caracteres digitados e de palavras traduzidas, com fórmulas simples, nada exageradas, indicando de forma automática a média diária em cada categoria. A sincronização com dados do celular permitiu combinar tanto os dados vinculados a sistemas de pagamento quanto o próprio tempo de uso de todos os demais aplicativos, o que expunha evidentes excessos de um ou outro quando contrastados aos dados anteriores tabulados manualmente.

Os gráficos também começaram a surgir entre as tabelas quase que por conta própria, mas sua impressão facilitava a visualização do todo e o planejamento dos próximos dias. Eles deixavam mais evidentes algumas correlações, caso notório entre o índice médio de lavagem de louça por semana com a produtividade acadêmica do mesmo período, bem como escancaravam a influência negativa que o alto índice de palavras traduzidas por dia provocava tanto na média por evento dos custos de supermercado, quanto no registro da média ponderada mensal de passeios com o cachorro. O ritual matinal de gerar os gráficos retroativos à média dos últimos sete dias para todas as atividades, além de eliminar eventuais distorções nos dados, transformou-se no momento mais esperado do dia, logo cedo, tomando café, olhando pela janela, acenando para o vizinho com a cabeça, que retribuía em claro sinal de aprovação enquanto também examinava os papéis que saíam vomitados de sua impressora.

A rotina estava definida, agora sem maiores percalços, e acordar pela manhã, cada vez mais cedo para consolidar alguns números e imprimir os relatórios em pastas bem organizadas já não era sacrifício algum. Foi em uma dessas manhãs cheias de trabalho, quando avaliava uma nova forma de otimizar os dados e mostrar além da média, a mediana e a moda nas categorias em que isso fosse pertinente, é lógico, uma vez que dados desnecessários só atrapalhariam, que o interfone tocou e, sem titubear, respeitando todas as orientações de higiene e das melhores práticas de segurança sanitária, desci para atender o mesmo senhor que havia confundido o endereço semanas antes. Com um sorriso por trás da máscara, falei que não havia problema, que enganos acontecem, mas ele, sério e seguro da informação, garantiu que desta vez o endereço não estava errado, e que precisava verificar alguns dos meus relatórios, que intuitivamente eu já carregava a tiracolo. Não cheguei a estranhar quando o fiscal observou que os números não estavam bons, de modo que concedi a possibilidade da existência de algumas divergências, mas não por má-fé ou desinteresse, senão pela velocidade com que algumas metodologias haviam sido aplicadas e eram corrigidas a cada dia, naquele dia mesmo havia acontecido. O vizinho acompanhava constrangido do outro lado da rua, e balançou a cabeça em reprovação quando o fiscal pediu que eu o acompanhasse até aqui para maiores explicações.

Como vinha dizendo, não sei como vim parar aqui, mas deve ter relação com tudo isso. Atesto e dou fé acerca das informações acima descritas, torcendo para que sejam suficientes para minha liberação e retorno às atividades regulares.

No dia 127 do ano de nossa pandemia, subscrevo-me.
ASJ

21.7.20

Dia 126: por Amanda Richter

Quarentena: um ensaio

Quando o isolamento social começou, eu achava que teria um pouco mais de tempo para ler e escrever. Estava errada. Todas as demandas aumentaram, a maioria ligada a leituras. Da graduação, as do tipo egoístas: provavelmente, terás que ler mais de uma vez, com atenção, para entender o que está ali.

Todos os clientes da agência, de repente, se deram conta do quanto o digital é importante e exigiram conteúdo como um urso que passou o inverno hibernando vai atrás de comida ao acordar. Foram dias vorazes.

Passei cerca de 2 meses nesse frenesi intenso de produzir conteúdo, ler materiais e participar das aulas, que pareciam infinitas. Não vou mentir: atrasei muitas coisas em boa parte das cadeiras.

Erro meu pensar que teria mais tempo durante o isolamento.

Eu queria muito adotar um cachorrinho e, finalmente, adotamos um filhote – agora que teríamos tempo de educa-lo. Mas eu não tinha previsto que o filhote demandaria tanto. Nem que eu teria que ficar com ele sozinha o tempo todo. O isolamento do Alisson acabou cedo. Apenas um mês e o trabalho já voltou, de novo exposto ao vírus todos os dias.

Acho que o pior desse isolamento é que, com o tempo tão lotado de tantas coisas, eu sinto falta de ler e escrever. Nunca foi um hábito sair de casa, adoro ler no conforto e segurança de casa.

Talvez ter morado tanto tempo em uma cidade pequena e sem criminalidade tenha me deixado mal-acostumada. Sair sem preocupações é um luxo que não se pode ter em Porto Alegre. Frequentemente, quando estou de férias, e tenho paz e tranquilidade, sinto saudades da última casa em que moramos em Ivoti: o quintal era praticamente do tamanho da casa, tinha uma árvore do tipo “mangueira” enorme, na qual meu pai prendeu um balanço feito de tábua de madeira e cordas rústicas, tinha duas ou três laranjeiras, entre as quais prendemos uma rede. É engraçado como um pedaço de terra que nem sequer é nosso possa ser tão querido na imensidão do planeta.

Sinto falta de encontrar um espaço assim em Porto Alegre, que seja pertinho, confortável e seguro. Preciso de um espaço meu para ler e escrever livremente.

A quarentena me fez pensar muito sobre isso. E a saudade de ler e escrever só cresce. O apartamento fica num bairro calmo de Porto Alegre, ouço os passarinhos cantando, os raios de sol da tarde entram pela janela, dando um toque dourado a tudo que toca. O filhote dorme aos meus pés e, no geral, há silêncio na rua, entrecortado pelo riso de uma criança de algum dos condomínios da volta. Mas ainda assim, o apartamento é pequeno, tudo está uma zona, desânimo e pressão por todos os lados. É impossível encontrar um cantinho de leitura nesse caos.

Eu gostaria muito de ter encontrado um café ou um parque para ler e escrever, como aqueles de filme. A vida pode parecer um filme às vezes, mas se fosse mesmo, eu teria que reclamar com o roteirista. Que raios de história é essa?

A quarentena em si não me incomoda. Eu gosto de estar em casa. Estou esperando ansiosamente que cheguem as férias e eu possa ler mais, e escrever mais. E gravar mais vídeos. Em meio a toda essa confusão, comecei a tocar um projeto que estava na gaveta há tempos: fazer vídeos para o YouTube e publicar. Muita ansiedade numa pessoa só. Queria me dividir em pelo menos dez “eu” pra poder fazer tudo que tenho vontade. Queria ver mais filmes também.

Esse isolamento de certa forma me fez voltar àquela menina de 12/14 anos, mais ou menos – meu auge criativo da adolescência, provavelmente. Foi uma experiência interessante. Desde aquela época eu já sabia que queria ser escritora, não sei muito bem por quê.

Ainda que não tenha conseguido mais tempo para executar os planos que tenho, a quarentena me possibilitou reerguer alguns hábitos e desejos antigos. As aulas foram grandes motivadores para alguns deles. Voltei a fotografar, comecei a gravar vídeos com assuntos que eu gostava de escrever em blogs, aprendi a editar os vídeos, voltei a desenhar – e até comecei a querer me aprofundar mais em mangás, animes e HQs. Descobri que HQs de não-ficção são extremamente interessantes.

São tantas as possibilidades para ser como uma escritora. São tantas as oportunidades e diferentes mundos que os professores nos apresentam. E quero experimentar cada uma delas ao longo da vida. Não sei muito bem como, e é assustador não ter um plano definido. Mas é sensacional assumir a identidade da profissão: eu sou uma escritora. Só levou 10 anos pra chegar aqui, e uma pandemia.

20.7.20

Dia 125: por Clara Oliveira

cento e vinte e dois dias em isolamento social.

depois de tanto tempo, fica difícil pensar no que falar ou escrever. organizar as ideias e sentimentos não é tarefa fácil, especialmente quando se torna tarefa diária, constante, incessante. às vezes, durante o banho, me pego imaginando como seria escorrer pelas paredes como as gotas de xampu que escapam dos meus cabelos. escorrer feito água. escorrer por algum lugar, banheiro, quarto, sala, casa afora. escorrer e sair, mas em segurança. sem medo de cruzar com o vizinho que segue sem usar máscara nas áreas comuns do prédio; sem receio de encontrar o filho da vizinha, que é um amor e adora distribuir abraços, tornando mais difícil recusar o afeto gratuito e imerecido; sem o encontro com o olhar severo de quem vê como exagero os cuidados que tomo. ciente dos privilégios e possibilidades que tenho, opto por ficar em casa, usar máscara, lavar as mãos, fazer o mínimo - me importar.

por falar em se importar, tudo se tornou tão duro e ando tão à flor da pele que já não sei mais separar os aborrecimentos válidos dos desmedidos. ouço amigos dizendo que não há problema em sair, a vida precisa continuar, todos vão pegar uma hora, não é mesmo? sim. não. é complicado. a rotina nos atropela e a vida continua, sem dúvida, mas aos trancos e barrancos, do jeito que dá, afinal, ainda estamos aqui. por isso, ler o Diário tem sido reconfortante: não estou sozinha, ainda há quem também veja a gravidade disso tudo, dessa realidade paralela que nos engoliu e não pretende nos botar pra fora tão cedo. leio o Diário e penso: ufa. sinto o abraço dessa gente de muitas palavras, com suas angústias, chateações e pequenas alegrias, com seus tantos sentimentos mistos e compartilhados. sinto os abraços e desejo abraçar de volta, mas não tenho certeza se ainda sei fazer isso. tudo bem, não faz mal: abraço cada um em pensamento.

pensando em abraços, acabo de me dar conta de uma coisa curiosa: meu relato caiu hoje, num vinte de julho, data em que duas das minhas cancerianas favoritas comemoram aniversário, uma em cada ponta do país. há exatamente um ano, o dia transcorria normalmente, em mais um inverno frio, e minha noite já estava reservada pra aniversariante gaúcha, com direito a festinha, comes, bebes, música, gente aglomerada num salão relativamente pequeno, um esquentando o outro sem nem perceber direito – o de sempre. jamais poderia imaginar que, exatamente um ano depois, estaríamos fazendo comemorações virtuais, nessa modalidade cada-um-na-sua-casa, impossibilitados de dar aquele abraço forte e encher o aniversariante de beijos. que saudade dos meus amigos. que saudade do "de sempre".

(ao mesmo tempo, penso sobre o "de sempre" e o "normal", sobre até que ponto eram assim tão bons. não sei. sinto que me importo em excesso com as coisas, mas, a cada dia que passa, vejo que ainda não me importo o suficiente. talvez esse isolamento possa servir também pra repensar e criar alternativas, pra que o tal do "novo normal" seja mesmo novo, melhor.)

quando tudo isso passar, quero deixar pra trás o cansaço, os resmungos desnecessários, a melancolia que não me cabe, o medo que me atravanca. quando tudo isso passar, quero seguir fazendo o mínimo, que é me importar ao máximo. quando tudo isso passar, quero correr pros abraços, sem medo nem ansiedade. quando tudo isso passar, quando tudo isso passar, quando tudo isso passar. enquanto não passa, a gente segue do jeito que dá - gota a gota, passo a passo, com tropeços, mas sempre em frente. sigamos.