Na verdade, eu só gostaria de poder esquecer. Chega uma hora que você também tem outras coisas pra se assustar, e sempre aparece, desgraceira e desgraceira de coisas pra se assustar. Quem não largaria de mão tudo por um pouco de paz? Esquecer de tudo. É o que todos fazem aqui na região onde as casas são cor de cinza descascado. Só se quer esquecer, mas vou te contar uma coisa: todo mundo de vez em quando ouve uns dois ou três estampidos lá longe. Uma hora você resolve não se assustar, ao menos não pensar tanto tempo, já que não faz sentido se não pode fazer nada.
A caminho das casas multicoloridas, escuto o ruído repetitivo de etiquetas sendo recolocadas, as pessoas sentadas em banquinhos, muito cômicas, dedicando seu tempo a substituir as etiquetas antigas, num trabalho que nunca termina, já que ao longo da semana sempre aparece um fornecedor ou uma manchete confusa que as obriga reajustar. Ninguém lê com calma, por isso não desconfiam da artificialidade da coisa.
Se é preciso lembrar, vou te contar: um zé povinho me aporrinha a vida dia sim dia sim. Não que ele mereça ser lembrado, e a bem da verdade, a melhor maneira de conduzir essas coisas seria esquecê-lo mesmo para todo sempre. Fazer como ele: dormir por cima dos problemas, se intoxicar, de vez em quando botar o som bem alto e entrar madrugada falando falando falando, com as paredes, pro telhado. As vezes invejo essa rotina, como se eu pudesse um dia também ganhar a vida no grito, só mandando tudo calar a boca, falando por cima.
Com frequência sinto um cheiro de plástico queimado ou madeira muito verde e imagino minha casa queimando. Um incêndio que vem zé povinho, e só depois percebo. Deve ser o que acontece com um nariz todo destruído de cheirar pó, ou uma bosta assim. Precisa se desgraçar com um cheiro de podre para sentir uma adrenalina. Queimar um terreno baldio, porque é assim que chamam um pedaço de natureza depois que já está cheio de lixo espalhado por ali. Tocar fogo em terreno baldio, para sentir um cheiro de mudança enquanto se observa sério a fumaça, como se disso surgisse uma experiência sábia. A sarça ardente! E então Deus mesmo apareceu para Moisés em meio à sarça, como diz na Bíblia. Imagino uns quinze anos de Datena ou programa da Márcia na cabeça da pessoa, se eu mesmo não aguento uns quinze dias dessa dieta...
Por vezes escuto sua conversa ridícula, outra bravata, o falar falar falar. Imagino essa cracolândia como se fosse o próprio Senado, na verdade mesmo o Judiciário, deliberando e decidindo aleatoriamente sobre a vida das pessoas que passam descuidadas ali pelo beco. E isso alegra a vida, a barca desce como se estivesse em direção a uma cachoeira, você sente o frenesi da urgência, e algo parece que vai mudar dramaticamente. Uma catarse imensa, o fármaco definitivo, remédio-veneno para vidas geradas na desgraça, zé povinhos obcecados pela desgraça, só reconhecendo uma cena alegre quando permeada por banhos de sangue. Como se um gostinho de sangue na boca fosse remédio para essa miséria toda que se vê aqui na região.
Quando as paredes estão encostadas umas nas outras, todos fazem questão de ensurdecer, mas às vezes esse barulho é muita coisa, quando ressoam como os estampidos. Desde sempre essa é uma vida na prisão, você pode escutar uma conversa de muitos pavilhões adiante, sem interessar de verdade, já que não vai se meter no que não te diz respeito. Porque uma hora acontece algo de inusitado, e ir preso não é pior que uma tempestade derrubar o teu barraco. Essa sensação é bem comum pra muita gente por aqui.
Na região, vi tantos que loteiam um campo e depois vendem. Não era pra morar, afinal, era só pra tirar vantagem do que estava de graça ali. Tem uns que desde sempre fizeram dinheiro assim, o avô que vendia arvores que derrubava, que estavam ali, coisa pública. Os mais favorecidos hoje tem seus sobrenomes ilustrando placas, com empreiteiras que não encontram nenhum problema de legislação ambiental. Lembro do aspecto semi rural que está se desvanecendo, um boi mugindo de noite ou o canto do galo madrugando cedo, aqui mesmo onde agora patrolam para fazer condomínio. Vejo um submundo de escroques, que hoje tem filhos ressentidos cujo plano máximo é passar no concurso da polícia, para daí poder espancar alguém ou dar tiros. Isso já há décadas, fatos históricos que fogem do arquivo e ocorrem nos bastidores do teatro jurídico. Enquanto isso sufoco com a fumaça, imaginando quando será a vez do meu barraco. E me pergunto por que o ódio prende mais atenção que os gestos de solidariedade?
O zé povinho fala fala fala, como se em uma prisão, como se numa tribuna, como se só pudesse fazer isso, pra daí então esquecer. Não querer pensar, ser um zé povinho, rosnar de um jeito cômico: “É por isso que o Brasil não vai pra frente!”, por cima de qualquer situação aleatória que seja trazida em meu cotidiano. Esquecer. E então, depois de muitos dias sem algo trágico, sentir que algo de grave está acontecendo.
No caminho até as casas multicoloridas, indo comprar mantimentos, todos falam falam falam como se isso fizesse o corpo fechado, escuto-os falando sobre a situação toda como se fosse um mau olhado que é só afastar que não deixa doente. Você pode inclusive encontrar sempre alguém com mais problemas, para daí se sentir melhor, mesmo se já tá descansando entubado na UTI. Acho maravilhoso como com frequência, desde o início, escuto sobre uma junçãozinha. Quando se encontram falam sobre como tomam cuidados, narrando obsessões cômicas a respeito do álcool gel. Enquanto isso, compartilham o mesmo copo de cerveja babada, algo que vejo pode se dizer até que com certa frequência aos domingos, a algumas quadras daqui.
Penso em quantas vezes já vi tragédias em que por nada um grandão derruba a porta, invade o barraco, arranca todos a pontapés e estapeia uma avó na frente de todos. Como esperar que sejam racionais, dentro desse absurdo todo? São tantas testemunhas que não se escuta, que levaria um tempo considerável para refazer em detalhes o cenário de toda essa tragédia. Já há muitos anos. Mas mal começamos a recapitular, e alguém mais nocivo, um outro zé povinho mais patológico, faz parecer que o psicopata do momento até que não era tão mal. Ou outra legislação correndo o risco de ser queimada, os juízes loucos para assumir uma ar inocente, como se buscassem fazer sua caridade ocasional. Sem dúvida a saúde das suas avós são seu o maior tesouro e está muito bem preservada. É um salve-se quem puder, uma desgraceira toda, um estardalhaço de sangue derramado.
A verdade é que eu só queria esquecer, e uma hora você resolve não pensar mais sobre isso. É justamente esse o problema. Ninguém quer pensar muito tempo se não pode fazer nada. Mas é só com a paz sentida nas casas de cristal translucido e luzes ambiente, que se pode de fato esquecer. Não há estampidos, não há pestilência ou pequenas avós sendo esculachadas pela polícia. Só assim é possível esquecer de verdade. Do lado de cá estão todos preocupados com seu próprio barraco, com a cela em que já vivem há décadas. Porque muitos se esforçam em esquecer é que não percebem que essa suposta selva, um grande terreno baldio, é na verdade um zoológico, e que o zé povinho é uma cria desse habitat.
É porque nas casas translúcidas de cristal já se esquece de fato, que continuamos encarcerados ouvindo um zé povinho lunático discursando, desesperados sem poder fazer nada. Lá se ocupam e iludem, mantêm um constante jogo onde fazem todo tipo de truques e pequenos blefes, e fingem que arriscam tudo, as próprias leis, suas matérias primas e reputações. Por vezes tudo é colocado na mesa de maneira dramática, se cria um tumulto histérico, que não precisa de sangue para ser controlado. Algo se reorganiza apenas com dor de cabeça, permitindo uma nova fase de esquecimento. É porque agora está tudo tranquilo nas casas de cristal translúcido, que transborda para cá um sentimento de paz, e se pensa poder esquecer tudo isso de fato. Esquecem que agora é o zé povinho que está ditando as regras do jogo.